Monday, March 18, 2024

Nuno Júdice, in memoriam

 Não é logo

sobre tantos retratos

tranquilos

de sorriso enigmático

com algo escondido

no olhar e

que alguém se precipita

a revelar

que surge a palavra certa,

a do lamento.

Na Primavera também morrem

poetas

como qualquer pessoa

de modo inesperado

mas dos poetas

exige-se tanto mais...

que fiquem

que perdurem

que nunca de ninguém

se vejam separados

não é para isso que servem

os retratos?

E as palavras, tantas,

que nele ficaram sem tempo

 atravessadas?

Não era Primavera?

Não estava a chegar

a bela Proserpina?

Mas poeta é assim:

Conhecida afinal

a última palavra

já não quis esperar.





 

Sunday, March 10, 2024

 O PAÍS

 

Em que país vivemos:

país de empurrão e de ruído

sempre assustado

como se houvesse medo

que no comboio da vida

alguém viesse ocupar

o lugar que já tinham reservado

 

7 de Março, 2024

 

 

 Trombetas no Apocalipse

 

E por que não um Scriabin

deslizando suave e breve

pelas teclas de um piano?

Podiam ser asas de Anjo

de compaixão e bondade

pondo fim a uma vida

que foi dada, não pedida

e agora chegava ao fim.

Afinal o que era a Eternidade

que não devia ter fim?

Cito um pintor amigo:

Eternidade, se existe, não tem

princípio nem fim

limita-se a existir, ultrapassa

o que dizemos, pois falamos sem saber.

Deus saberá talvez

e mesmo assim...

 

6 de Março, 2024

 

 

 

Friday, March 01, 2024

 CARLOS NO ATELIER

(para Carlos Nogueira, amizade, admiração)

 

Caminhar à beira-rio

já é parte dessa busca

que o fecha no atelier

Fernando Pessoa dizia

sempre inquieto com perguntas

o que é ser rio e correr

o que é estar eu a ver?

Sabia o que era esse rio

que corria para o mar

mas de si nada sabia

tinha de perguntar.

Carlos também pergunta

no atelier tem respostas

que podem ser mais perguntas

e o levam a procurar...

junta coisas

junta pedras

desenha no chão

mais espaços

podem ser quartos da infância

brinquedos que se partiram

e ele agora recupera

num moderno imaginário

de que faz parte a pintura

geometrias da alma

num papel ou numa tela

letras de brincadeira

projectos de perfeição

rabiscos de vida inteira

o que se esconde afinal

nesta casa que é segunda

um atelier de magias

onde ele se fecha consigo

faz e desfaz à vontade

o que é de si e de um outro

não perguntem que ele não diz

às vezes nascem de um rio

essas formas que ele inventa

ou de um céu cheio de nuvens

ou de um papel sujo no chão

na alma não há desperdício

todo o sinal tem sentido

merece a sua atenção

Carlos é criador

não é poeta perdido

como Pessoa no rio

pinta a interrogação...

 

YKC, Lisboa 1 de Março, 2024

 

  

 


Monday, February 19, 2024

AD TREVAM

  AD TREVAM

in memoriam NAVALNY

 

Todo o planeta explode

na semana

em que começa

o caminho das trevas

no mar erguem-se

as marés furiosas

afundam-se as florestas

e a terra estremece

como já tantas vezes

outrora aconteceu

perdidos caminham

os homens sem sentido

ao verem como caem

os homens bons

os justos

que ainda guardavam

uma esperança

mais uma vez adiada

o que farão os outros

os que esperam

será que ainda lutam

na treva

pela luz anunciada?

 

18 de fevereiro

Sunday, January 28, 2024

VIERAM

 

VIERAM

vieram

não os chamei

mas vieram

os espíritos

estavam guardados

entre as pregas da vida

e muito esfomeados

não os chamei

mas vieram

agora vão saciados

Thursday, January 04, 2024

Revista NERVO

 A revista NERVO, de literatura e arte, editada por Maria F. Roldão, abre o ano de 2024 com uma capa de Nuno Félix da Costa: foto de Fernando Pessoa em frente (enfrentando? ) do Coelho de Alice. Tal como nos desenhos que ilustram a primeira  edição de Lewis Carroll, aqui o coelho é da altura de Pessoa. Um frente a frente simétrico, embora se pressinta que toda a simetria se esgota aí. Serão muito diferentes, nesta fotografia, embora no livro de Carroll o coelho possa ser considerado o condutor de Alice, que vai correr atrás dele até cair na sua toca, um poço de mistério profundo onde tudo pode acontecer e vai acontecendo. Alice, com o coelho, vive uma série de peripécias que a fazem crescer ao longo de uma narrativa que todo o tempo surpreende. Pessoa, pelo contrário, frente ao coelho não deixa de se revelar homem crescido, sisudo mesmo, e quem sabe se incapaz de toda e qualquer aventura que surpreenda, como as de Alice.

O que levou então o autor, neste caso da foto, Nuno Félix, a colocá-los frente a  frente?  E que título se daria a esta obra? Pessoa na toca do coelho? Impossível, pois o poeta da Mensagem e da Ode Marítima nunca seria capaz de correr atrás de um imprevisto, ele que sofria de um mal terrível, o da permanente e paralisante interrogação do destino, o seu e o dos outros, no somatório do país e do mundo.

O coelho levou Alice a correr o mundo, da fantasia e da vida. Ela foi sempre andando, por aqui e por ali. Ele ficou sempre parado, inquirindo, é certo, mas os mistérios nunca se lhe revelaram. Alice, podemos dizer que foi de certa maneira iniciada com a intervenção do coelho. Já Pessoa desejou profundamente uma iniciação que não chegava. As correrias do coelho, que se dizia sempre atrasado (até chegar à Rainha de Copas) não eram as de Pessoa, que podemos dizer com justiça que esteve sempre adiantado e foi sempre adiado no seu desejo profundo, talvez por isso mesmo. O coelho era prenda de crianças ainda em desenvolvimento, emocional (e sem querer ofender leitores mais sensíveis) e sexual. O coelho da reprodução, necessidade da espécie. De frente para o sisudo Pessoa, escolhido por Nuno Félix, percebe-se que o condena, por ser um pensador abstinente. Por sua vez o ar de Pessoa não disfarça como as correrias do coelho o deixariam ainda mais quieto e indiferente.

Não era homem de pressas, e os desvarios de um Álvaro de Campos não eram mais do que isso : excitação puramente intelectual, quem sabe se com algum desejo oculto de escandalizar o burguês do seu tempo, mas na prática não o levando a mexer-se da cadeira, ou do encosto à cómoda onde gostava por vezes de escrever em pé, como Montaigne no seu castelo. Pessoa o pensador, frente ao coelho reprodutor, está dito. Vendo bem, o coelho assusta tanto, quando olhamos para ele, como Pessoa, o venerado poeta. Não há riso, naquela foto. E sabemos que Alice, na sombra, se interroga por trás de ambos. 

Alusão a uma Anima que embora ausente da foto se vai manifestando através deles? Um sinal que ao contrário do que afirma Hoelderlin está mesmo carregado de sentido?

Félix deixa-nos então à mercê não de uma resposta ao desafio, mas de uma pergunta, quem sabe sem resposta. 

Mais fácil é compreender as duas outras ilustrações, com ouras duas fotos, Pessoa e Camões frente e frente. Na primeira entrepõe-se entre Pessoa e o seu sonho de Super-Camões um corpo de mulher, oferecida, de costas. A lição é directa não haverá mulher, nem corpo tentador que se interponha entre Pessoa e o seu sonho. Na segunda foto já nem sequer a mulher está presente. O desejo do feminino, se alguma vez existiu, foi apagado.   







  

  

Wednesday, December 27, 2023

Agnus Dei

 

Agnus Dei

(ouvindo o Requiem de Mozart

 Era o cordeiro de Deus

mas não foi salvo.

Deus não interrompeu

o sacrifício

do filho bem-amado

o sangue teria de escorrer

para que o corpo fosse

transformado

e o Adão primordial

pudesse ter perdão