Sunday, April 30, 2006

Mais Boris Vian


No artigo dedicado à "Mitologia Vianesca", Pierre Baratay recupera as estruturas e imagens de mitos tradicionais como o de Édipo, o de Orfeu, o das Ménades - para apresentar a sua visão de alguns dos importantes romances de Boris Vian:
L'HERBE ROUGE ; L'ÉCUME DES JOURS; LE VOYEUR.
Outro estudioso, Noel Arnaud, também convida os colegas do COLLÈGE DE PATAPHYSIQUE a descobrir, em L'AUTOMNE à PÉQUIN, uma estrutura alquímica, pois entende que ali " o sol ocupa um lugar determinante", como na obra alquímica.É neste romance que Angel, que sofre um processo iniciático, dirá : " Mon système est trop parfait pour pouvouir jamais être réalisé: en outre, il est incommunicable."
Quanto às mulheres, nas obras citadas, são identificáveis aos quatro elementos, diz Baratay. Recorde-se o Imaginário da Matéria nas obras de G.Bachelard e a compreensão desta ideia será logo mais fácil.
Os processos do autor podem ser conscientes ou inconscientes, mas isso em nada altera o seu valor simbólico real.
Finalmente, como nos tratados de alquimia, Baratay descreve o "Bestiário Psicológico" que encontra nestas obras de Vian, sobretudo em L'Écume des Jours e L'Automne à Péquin; na primeira, as imagens nascem do mar, nota ele; na última nascem da terra; na primeira são imagens-peixe; na última, imagens-serpente. Mas todas correspondem a uma dinâmica oriunda das energias do inconsciente.
( OBLIQUES, pp. 183-197)

BORIS VIAN, le jazz est dangereux


Boris Vian, nesta Europa que se quer tão arrumada, tão normalizada que mete medo, deveria poder ressuscitar, com as suas canções, os seus textos, de todo o género, o seu humor/amor,como o que dedicou a Ursula, o seu jazz, tão mal amado naquela França que se divertia nas noites longas de Saint-Germain e vir gritar aos ouvidos de hoje o irónico artigo que escreveu sobre os "malefícios "do Jazz.
Não vou transcrevê-lo aqui por inteiro, mas deixar só a conclusão:
" ATTENTION! Il y a danger. SUPPRIMEZ LE JAZZ et vous aurez tué dans l'oeuf tous les germes de rébellion sociale qui, à brève écheance, engendreront, tôt ou tard, la guerre atomique."
Escrito nos anos 50, por que será que este protesto parece ainda, em Portugal, de tão grande actualidade?

Para quem não conheça a sua música (ele tocava trompete), os seus livros, a sua pintura, os seus muitos amigos do chamado colégio de "PATAPHYSIQUE", ver: BORIS VIAN DE A à Z, OBLIQUES, n. 8-9.
Como primeira leitura talvez L'ÉCUME DES JOURS ?
E entre outras canções, a VALSE DINGUE, "Une chanson d'Hamour".
Deixo uma estrofe, para ser saboreada, tanto quanto cantada:

"Un' valse en forme de chaise
a repriser des bas
Un' valse en forme de fraise
qu'on mange avec ses doigts
Un' valse avec des écailles
comme un petit poisson
Un' valse pour les volailles
et pour les saucissons
...
Un' valse en peau d' anchois
Un' valse en paté d' foie
Allons chanter dans les bois "

Friday, April 28, 2006

Sa-Carneiro



O aliciante, na leitura de um bom livro, é que nos remete para outras leituras.
Neste caso, depois de ter lido o estudo de Fátima Inácio Gomes, lembrei-me de um outro, que igualmente aconselho, de Maria José de Lancastre, intitulado O EU E O OUTRO ( para uma análise psicanalítica da obra de Mário de Sá-Carneiro).
Publicado em 1992, não perdeu a sua actualidade, neste ano em que em torno da obra de Pessoa se devem voltar a ler Almada Negreiros e Mário,o infeliz companheiro que desejava mudança, mas a si mesmo não se conseguiu mudar.
As Cartas fornecem, como é natural, o maior suporte para a análise que Maria José se propõe fazer: descrever o itinerário de uma situação melancólico-depressiva que o poeta terá atravessado durante a estadia em Paris, em 1912, e a seguir, novamente regressado, em 1915/16, data do seu suicídio.
A memória do jovem amigo perdura na de Pessoa: num poema de 1934, dedicado a Sá-Carneiro, escreve: " Como éramos só um falando.Nós eramos como um diálogo numa alma". (in F.Pessoa, Poesias Inéditas, ed. Ática, 1960)
A este propósito Maria José de Lancastre observa, nas notas, que este "diálogo numa alma" podia representar simbolicamente o que se passa numa sessão psicanalítica. Estaríamos aqui perante um caso de "transfert".
Dieter Woll, citado pela autora e ainda hoje um dos estudiosos que não podemos esquecer( REALIDADE E IDEALIDADE NA LÍRICA DE SÁ-CARNEIRO,Lisboa, 1968 ) fala de "depressão" ao abordar o estado de espírito do poeta.
Àcerca do retrato que Almada fez de Sá-Carneiro, a autora observa que é o único em que o vemos de corpo inteiro. Feito em 1963, retrata-o sentado à mesa de um café, onde numa folha de papel se pode ler a palavra "quasi".O seu rosto, gordo, como ele se descreveu tantas vezes, está virado para o alto, numa pose lânguida que, como diz Maria José tanto podia vir da memória de Almada como dos textos do poeta.
Certeira é a anotação do quase : pois ele foi quase, e só por não ter chegado a ser se transformou, na memória dos amigos e leitores, o símbolo mesmo da OBRA inacabada.Obra que numa interpretação de simbólica junguiana nos permitiria ver Pessoa como o Espírito, Sá-Carneiro como a Alma e a ligação profunda entre ambos como o momento que não foi possível viver, ultrapassando-o.
A questão do transfert é pertinente, e pode aplicar-se tanto a um como a outro dos poetas de "alma unida" , Na impossibilidade de haver integração sublimada, a fractura instalou-se em ambos de forma irremediável. Mas o jovem exilado em Paris lia Nerval, o romântico decadente, enquanto o Pessoa lisboeta, digerindo Freud, procurava na heteronimia os desdobramentos redentores.

Kati Kustner : OKTAV


Exposição de pintura a partir do romance ANFANG, EDITION ERATA, 2006.
KULTURRAUM, Leipziger Raum.

Ou de como uma escrita fragmentada pode inspirar uma pintura que se adivinha ao mesmo tempo quotidiana, cósmica e vibrante.

Wednesday, April 26, 2006

Ursula Le Guin,The left hand of darkness


Encontramos em autores modernos, como Ursula Le Guin, a recuperação, ainda que de forma distópica, de mitos antigos, neste caso o do Andrógino.
A mão esquerda da Treva não torna apetecível a ideia de um paraíso em que todos os seres, sendo andróginos, se bastam a si próprios, numa desolação em que ninguém precisa de ninguém.
O mito fez carreira, desde o tempo de Platão, e há códices da Idade-Média, como o desta imagem, do LIVRE DES MERVEILLES do séc.XV francês, em que vemos o Criador debruçado complacentemente sobre uma Eva hermafrodita a colher o fruto da árvore que se adivinha ser a do conhecimento.
Mais interessante é antes a estória contada na QUESTE DEL SAINT GRAAL( ed. de Pauphilet, 1984); no conto messiânico da Nave de Salomão, os heróis são conduzidos a uma cidade que é, na opinião do estudioso francês, "o símbolo transparente da Jerusalém Celeste "; antes de se lá chegar é narrada a lenda da verdadeira Árvore da Vida:
Eva, ao ser castigada com a expulsão do Paraíso, levou um ramo da árvore de cujo fruto tinha comido.E guardou-o,para lembrança da sua infelicidade. Plantou-o na terra, onde o ramo se manteve erecto, criou raiz e cresceu.Este ramo, que a primeira pecadora trouxe consigo, tinha um grande significado.Eva era ainda virgem, conta o autor da QUESTE, mas fez um discurso dirigido aos seus sucessores: "Não vos lamenteis por termos perdido a nossa herança; não está perdida para sempre,vede aqui no crescimento do ramo o sinal do nosso regresso futuro". E o autor explica por que razão é a mulher e não o homem a portadora do ramo (a portadora da vida, pois ele cresceu). Pela mulher se perdeu a vida do Paraíso, e pela mulher a vida será recuperada (com a Virgem Maria e o fruto do seu ventre).
Continuando: o ramo em pouco tempo se fez árvore, uma árvore alta,frondosa, com o tronco, os ramos e folhas tudo branco como a neve.Sendo o branco o símbolo da virgindade, percebe-se que Eva, ainda virgem, só podia plantar uma árvore dessa mesma côr.
Estando a dada altura Adão e Eva sentados junto da árvore, ouvem uma voz do Alto que lhes diz para não se lamentarem pois a árvore continha mais vida do que morte; e eles passaram a chamar-lhe ÁRVORE DA VIDA.Plantaram de seguida muitas outras,que logo tomaram raiz, mantendo a mesma côr branca.
Mais tarde ainda voltam a ouvir uma voz que lhes ordena " que se unam carnalmente". Consumada a união, a árvore, que era branca, tornou-se tão verde como a erva dos campos, e passou a ter flor, e dar fruto, o que antes não tinha acontecido.

Podemos especular sobre o sentido da Árvore que Eva traz do Paraíso: do Conhecimento, e da Vida, pois a seguir à união do casal que antes fora "andrógino" se transforma em verdadeira árvore, portadora de flor e de fruto. Adão e Eva também cumprirão o destino previsto: crescem (em conhecimento e vida) multiplicam-se, e os seus filhos cobrem a terra.

Tuesday, April 25, 2006

MAIS JORN


ASGER JORN nasceu na Dinamarca em 1914.De 1936 a 1939 teve logo a sorte de fazer uma carreira de sucesso, com grandes encomendas que o levaram a Paris, ao "Palais des Temps Nouveaux", em 1937 e a uma colaboração com Fernand Léger para o "Grand Palais de la Découverte" .
Em Guy Atkins, seu biógrafo, e autor do Catalogue Raisonné da sua obra, encontramos todas as informações necessárias à compreensão do seu percurso, variado e empenhado, tanto nas questões de discussão artística, como política.
Veremos Jorn associado ao movimento Cobra, à Internacional Situacionista, com início em 1957. Colaborou com poetas como Chr. Dotremont e Guy Debord. Teve sempre grande ligação ao pensamento e criatividade literária do seu tempo.
Dos seus heróis, Atkins destaca Alfred Jarry, Huizinga, Karl Marx, Niels Bohr, Gaston Bachelard, James Joyce, Ruskin , e tantos outros que deixarei de fora. Pretendo apenas mostrar como a arte, todas as artes, se alimentam de cultura e memória, antiga ou contemporânea.
A partir de 1960 Jorn faz escolhas dos que lhe são mais próximos, pela imaginação e experimentalismo: Dubuffet, Michaux, são nessa altura os mais importantes.
Numa entrevista em que lhe perguntam afinal o que é ele, por se achar a sua obra interessante mas também contraditória, Jorn responde: há pessoas nas aldeias que andam por lá sem fazer nada, vasculhando nas cinzas e encontrando as coisas mais espantosas...dizem que são malucos, mas toda a gente os respeita porque representam tudo o que há de mágico, estranho e inexplicável na vida.
Só para terminar, o quadro que pinta depois da guerra e que intitula , como bem se compreende, JOIE DE VIVRE (Alegria de Viver), 1946.

BAUDELAIRE E JORN


Como se verá pelo quadro reproduzido, a literatura andará sempre de mãos dadas com a arte, pois os poetas e pintores de todos os tempos encontrarão nas imagens de uns e outros uma fonte de inspiração que não se esgota.
Tudo depende do momento em que se lê ou vê, e da empatia que se sente.Magritte releu Baudelaire e Asger Jorn também o releu à sua maneira e prestou-lhe homenagem neste quadro de 1942, pintado na Dinamarca,seu país natal, para onde regressou por causa da guerra (antes vivera em Paris).
Aqui fica então, para o prazer dos olhos , HOMAGE TO BAUDELAIRE.

Monday, April 24, 2006

EMILIA NADAL


O RETRATO-DECOMPOSIÇÃO, óleo de 1974, pertence ainda a uma fase da obra de Emilia Nadal em que a marca de Surrealistas e de Metafísicos como de Chirico, se fazia sentir. Filtrada, é óbvio, pela sensibilidade de uma pintora que não se deixaria aprisionar por completo, nem para sempre, por nenhuma dessas doutrinas ou experiencias, por muito libertadoras que fosssem.
O Retrato-Decomposição já permite, à sua maneira, antever o que se vai seguir.
A cabeça, de brilho lunar contra fundo azul noite, libertou-se da moldura que a devia conter, e flutua num espaço que já perto do tecto a levará para um jardim de que a árvore, também ela translúcida e lunar, já representa.
Bem centrada sobre o azulejo que é um quadrado negro, fazendo a divisão entre os dois outros que estão de cada lado, marcando o centro que é um 5, figuração da vida, quinta-essencia do impulso criador, vemos então, suspensa,uma romã aberta, quase deixando que se contem os bagos, lembrando assim que a figura que se quis decompor se mantém una , se mantém viva, nesse próprio momento em que parece escapar de toda a realidade.
A fuga é uma sublimação, representa " o espírito das coisas " em " súbitas iluminações", como diz Kandinsky - ou neste caso a projecção de um profundo desejo de viver ( a romã ) mas de outra forma, mais livre, e mais feliz, porque perto de uma árvore que é branca, como reza a lenda que era, no Paraiso Terreal recuperado por Eva e por Adão, a verdadeira Árvore da Vida.
Escreve Fernando de Azevedo no catálogo da exposição de 1992, subordinada ao título de FIGURAÇÂO DA LUZ:
" De há anos para cá que a sua pintura me lembra sempre a obra de alguém que seguisse um rasto luminoso no espaço; não meteórico e mecânico como hoje é possível e normal, mas...por uma força que só interiormente se avalia e continua a habitar um espaço desconhecido." E diz ainda, adiante: "Emília Nadal passa pelo Paraíso", referindo-se ao conjunto dos quadros inspirados no Cântico dos Cânticos, onde também encontramos o "Jardim das Romanzeiras".
Recuperando de novo esta tela mais antiga, não posso deixar de concluir que passa pela obra de Emília Nadal um Sopro Feminino,algo que remete para "O Espírito e a Esposa",como se diz no Epílogo do Apocalipse, a dupla face das Árvores da Nova Jerusalém reconstruída.

Saturday, April 22, 2006

BAUDELAIRE e MAGRITTE



LA GÉANTE é uma aguarela que Magritte pintou nos anos 1929/30, inspirado no célebre poema de Baudelaire,com o mesmo título, e que darei em tradução. Anos mais tarde, em 1967, publica-se na revista STUDIO uma conversa do pintor sobre o que une "o mistério e a poesia" : "O mistério existe, porque a mensagem poética possui uma realidade...O pensamento inspirado imagina uma ordem que une as imagens do visível; a imagem poética possui a mesma espécie de realidade que o universo. Porquê ? Porque responde ao nosso interesse natural pelo desconhecido."
Nesta aguarela, de que só vemos uma parte, a do corpo imenso da gigante, o mistério reside na dimensão dos objectos caseiros, a mesa, por exemplo, com o vaso de flores, e sobretudo na pequenez do homem que, de costas, de pouco ultrapassa a altura dos pés da mesa; a porta, a mesa, o homem,- tudo fica à esquerda de quem observa o quadro, de que se destaca então à direita o corpo nú, poderoso, da gigante cujo olhar não se desvia para esse "pequeno" mundo de que não parece fazer parte.

LA GÉANTE /A GIGANTE

No tempo em que a Natureza de poder vigoroso
gerava em cada dia seus filhos monstruosos,
gostaria eu de ter vivido com uma jovem gigante,
tal gato voluptuoso aos pés de uma rainha.

Gostaria de ter visto seu corpo a florir com a sua alma
crescendo livremente nos seus jogos terríveis.
Adivinhar se alguma chama escura se escondia no peito
ao ver nadar, nos seus olhos, húmidos nevoeiros.

Percorrer à vontade as magníficas formas,
rastejar sobre as curvas dos enormes joelhos
e às vezes, no Verão, quando os sóis doentios

a fizessem estender-se,cansada, sobre o campo,
dormir preguiçosamente à sombra dos seus seios,
como tranquila aldeia aos pés de uma montanha.


Vem a propósito recordar um poema do jovem Fernando Pessoa quando assinava Alexander Search e escrevia em inglês intitulado igualmente A GIGANTE /THE GIANTESS.
Poderá ter sido inspirado pela leitura de Baudelaire, ou ter sido apenas a concretização de um devaneio lírico e juvenil sobre o mistério assustador da Beleza.No poeta francês percebe-se que ali está a Mãe-Terra,a Grande-Mãe que a todos abraçará um dia, embalando os seus filhos ou os seus amantes, num sono mais do que preguiçoso, definitivo.
A poesia inglesa de Search foi traduzida por Luisa Freire para as ed. Assírio e Alvim ( 1999 ) e nunca será demais elogiar a elegancia do trabalho feito, e o cuidado com que a tradutora procurou ser fiel a uma "letra" nem sempre fácil, por pomposa, o que foi um traço frequente na poesia juvenil de Pessoa nesta língua, que afinal não era "a sua pátria".
Aqui deixo o poema ( de 1907 ) na tradução portuguesa:

THE GIANTESS /A GIGANTE

Vi um dia uma cómica gigante
tentando comer qualquer coisa enorme,
sozinha, num festim alucinante,
coisa,como pedra, dura e informe.
Mas para a sua boca era tão imensa
que, na sua avidez assim intensa,
dobrava o esforço de seu desejo nulo.
E seu abocanhar amplo, impotente,
teria feito rir, não fosse o riso
suspenso por isto ser pungente.
Nesta orgia oca, inconsequente,
eu a vi e, notando o seu sofrer,
perguntei: "o que é essa coisa imensa
que, sem sucesso,lutas por comer? "
E ri, grosseiro, tranquilamente.
Ela chorou e, entre lágrimas, disse:
"esta comida que, de grande, se escapa
sempre à minha boca já dorida
é a Beleza una e toda inteira".
Olhei para ela e já não me ri,
mas antes chorei, pois entendi.

Friday, April 21, 2006

Fernando Pessoa, Eros e Psique


Neste poema de Pessoa encontramos o trabalho do mito tal como ele o descobriu em Apuleio, cuja obra possuía.
Coloca-lhe uma epígrafe iniciática, maçónica, que também ela resume a "lição" do mito : união de opostos.
"...E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade."
(DO RITUAL DO GRAU DE MESTRE DA ORDEM TEMPLÁRIA DE PORTUGAL)

"Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
Do além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino -
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E,inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão , e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia."


De grande interesse para a erótica simbólica tanto de Pessoa como de SÁ-CARNEIRO seu amigo, discípulo que assim o desejava ser, e fundador com ele de uma estética pré-modernista, é agora o estudo publicado por FÁTIMA INÁCIO GOMES, na colecção "Temas Portugueses" da I.N.C.M., com apresentação de Urbano Tavares Rodrigues.
Na realidade, ser um dos rostos múltiplos do tempo, de si próprio ou do próprio Pessoa foi sem dúvida uma das fantasias do jovem Sá-Carneiro.Vivendo e sofrendo pulsões contraditórias, que não saberá nunca como ultrapassar, escapará à impotência perante a vida através de um suicídio tão doloroso quanto ela: com frascos de estricnina que engole uns a seguir aos outros.
Para este poeta, como bem diz Fátima Gomes no último capítulo do seu livro, a mulher da "carne inexistente" é aquela que não o assustará com a sua sexualidade, que se fará pequena e neutra a seu lado, bem à maneira de como Pessoa a desenhou, quer pela voz de Ricardo Reis, quer pela aproximação e afastamento de Ophelinha, algo que vinha já dos seus tempo de Alexander Search.
Fátima Gomes conclui que esta imagem do feminino contém a saudade da Ama, "humilde e carinhosa" : "ter amas a vida inteira..." (in Elegia).
Citando, para terminar :
"Esta mulher seria a amante perfeita, a noiva idealizada que acompanharia qual Aurora ou Sophia alquímica , a ascensão do herói solar:
...
Teus beijos,queria-os de tule,
Transparecendo de carmim-
Os teus espasmos de seda...

Água fria e clara numa noite azul,
Água,devia ser o teu amor por mim..
(A Inigualável) "

Mas há aqui todo um crescimento que se perde. Na alquimia a própria Água é quente, tem o bafo da Vida, que é espírito e matéria. Sá-Carneiro morreu impreparado e jovem, eternamente adolescente como os tempos o guardarão na memória.

Ver : Fátima Inácio Gomes, O IMAGINÁRIO SEXUAL NA OBRA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, Lisboa, 2006

O FOGO DE MAGRITTE



Por muito que Magritte afirme não ser surrealista,o que se aceita pois ele criou a dada altura fora desses circuitos doutrinais quando se tornaram demasiado escolares ou políticos e impositivos, há na sua obra um quase excesso do simbólico , misterioso e actuante, provindo ou não do sonho, e por muito que o pintor afirme não acreditar no reservatório imenso que é o inconsciente, pessoal ou colectivo.
"Não creio no inconsciente, nem que o mundo se nos apresente como um sonho,de maneira diferente da do sono."

Contudo este é o mesmo Magritte que lamentará, na década de 50, que Breton não procure mais a Pedra Filosofal. A recusa, por parte de um artista, das marcas que o perturbam, como podem ser estas do inconsciente, é no fundo o reconhecimento de que elas existem, de forma mais ou menos explícita.

É interessante ver como o pintor trabalha a matéria das imagens simbólicas nos seus quadros. Nos anos 30 /40 o fogo está presente: veja-se O CICERONE, de 1947 : da boca de um ser mais máquina do que homem sai uma labareda poderosa; ou veja-se A DESCOBERTA DO FOGO, de 1934/35: um enorme saxofone a arder; ou ainda, a ESCALA DO FOGO, de 1939: sobre uma mesa, 3 elementos: papel amachucado a arder, um ovo a arder, uma chave ( a da solução ? ) igualmente a arder.Do papel amachucado podemos dizer que por aí se manifesta a recusa da literatice que também os alquimistas censuram; e quanto aos outros elementos, o significado também é claro: o ovo (da vida) que tem de ser tocado, como em Maier, ou queimado (sublimado) para que a chave da vida seja entregue.

O FOGO



O FOGO aparece na Atalanta Fugiens representado de várias maneiras: na gravura VIII vemos um homem erguendo uma espada com a qual irá tocar num ovo colocado sobre uma mesa baixa.À sua frente tem uma grande lareira com fogo de lenha a arder, e à sua direita um longo corredor abre para uma paisagem que se adivinha lá fora.
A legenda diz: "Pega no ovo e toca-lhe com um glaivo de fogo". Nos versos do Epigrama conclui-se "...Com prudencia/
toca-o (ao ovo) com uma espada de fogo, é esse o uso."
Percebe-se claramente que a imagem do ovo se refere à Vida, à semente de vida que a Obra fecundará e tornará fértil no crescimento e na chamada "augmentatio", uma das fases pelas quais se passará.
Quanto ao fogo. é o quarto elemento, o que depois da limpeza, da dissolução já descrita, permitirá chegar com sucesso ao fim que se pretende.
Outras gravuras, como a X, reforçam esta ideia: "dá fogo ao fogo...e isso chegará".
E no Epigrama: " O fogo ao fogo e Mercúrio a Mercúrio /Unem-se : eis aqui o limite da tua arte ".

Outras gravuras que passo adiante mostram como "irmão e irmã têm de beber a poção do amor", como a terra tem de ser lavrada e semeada para frutificar e finalmente o segredo é revelado numa das últimas representações: "O fruto da sabedoria humana é a árvore da vida" (gravura XXVI). Já entretanto Maier mandara que se rasgassem os livros, lembrando o desabafo de Fausto, envelhecido e cansado de tanto Saber inútil, enquanto a vida lhe passava ao lado. De uma certa maneira Fausto será "salvo" por Mefistófeles, pois será este a oferecer-lhe o fruto da árvore da vida na pessoa de Gretchen. Depois de imolada no Fausto I, transformar-se-á em redentora, no final da tragédia, elevando a essencia sublime do herói à visão do Eterno Feminino.

Thursday, April 20, 2006

ATALANTE FUGITIVE III




Continuando com a "lição" de M.Maier, vemos na terceira Gravura uma mulher a lavar roupa.
A legenda reza: "procura a mulher que lava roupa, e tu faz como ela".
Trata-se aqui de referir o terceiro elemento indispensável à Obra : a ÁGUA.
Tivemos o AR, a TERRA, agora a ÁGUA.
Repare-se que atrás da mulher arde um fogo de lenha, para que a água que ela usa seja quente.
Os versos do Epigrama,sob a gravura, explicam :
" Repara nesta mulher, como purga a sua roupa
limpando-a com baldes de água quente.
Imita-a...
A onda lava a sujidade do corpo negro ".

O corpo negro é a Matéria da Obra, a Pedra com os variados nomes que lhe são atribuídos.Mas importa salientar a presença dos elementos, sem os quais nada é possível fazer.
Adiante falaremos do FOGO, que nesta gravura ainda não tem a presença forte que terá nas outras, permitindo então que o trabalho se fixe e se sublime.

Tuesday, April 18, 2006

ATALANTE FUGITIVE II




O que Jung dizia àcerca dos tratados de alquimia chinesa, que a "lição" vinha logo no princípio e aí se desvendavam os segredos, depois desenvolvidos, aplica-se também muitas vezes ao caso das gravuras que ilustram a literatura alquímica mais poética e cifrada.

A lição é bem simples, como se pode ver por estas duas primeiras da Atalanta Fugiens: trata-se da semente da vida; é transportada pelo vento, amamentada pela terra.
A semente pode ser de uma flor (a rosa que dá o mel às abelhas...), de uma árvore ( o carvalho sagrado dos druidas da tradição céltica), pode ser de uma criança que a mãe acarinha ao colo (a Mãe-Terra, a primeira Eva,que recebeu do Adão primordial a semente da espécie humana) .
Em suma, trata-se ao fim e ao cabo da vida.
Dar e receber a vida, viver, ver crescer, cumprir o destino que é a Obra.
Na gravura I a legenda dizia " O Vento levou-a no seu Ventre. É a terra que amamenta com o seu leite "o filho dos Sábios" ou, porque no Epigrama se chama à semente "embrião", "o Vento levou-o no seu Ventre", o que significa o mesmo.
Na gravura II a legenda reza : " a Terra é a sua Ama ". E no Epigrama podemos ler que " a Terra alimentou com o seu leite o frágil filho dos Sábios ". Mais uma vez a Vida,cuja ama, na gravura é o próprio Globo Terrestre.
A vida, desde a mais ínfima partícula hoje em dia estudada pelos físicos até à maior das manifestações que se venham a descobrir no universo criado.
É disso que trata a alquimia: dos mistérios do universo criado, da origem da vida em todas as suas manifestações, vegetais , animais, humanas ,quem sabe se outras, tudo projectado pela imaginação e fantasia ( a estrela no homem) dos nossos esperançosos antepassados cientistas e filósofos herméticos.

ATALANTE FUGITIVE



Michael Maier nasceu em 1568 no Holstein, e em 1596 obtém o grau de doutor em medicina em Bâle, cidade onde já Khunrath, antes dele, se formara igualmente.
Aqui recebeu sem dúvida a primeira influencia das ciencias herméticas, pois esta era a cidade de Paracelso, cujas obras médicas e alquímicas contagiaram o mundo culto de então.
Maier obtém depois o grau de doutor em filosofia. A sua sede de conhecimento tem algo de parecido com Rabelais, como observa o tradutor francês da ATALANTA.
O último grau que obtém é o de doutor em "medicina hermética", como ele próprio refere. Era de resto muito no meio médico , e já desde os árabes,que o hermetismo se vinha a desenvolver.
O Imperador Rudolfo II, em 1608, convida-o para seu médico pessoal. A vida de Maier transforma-se então de simples vida de adepto em vida de cortesão protegido, que o Imperador fará Conde Palatino,
Em 1612 Rudolfo morre, e Maier parte para Inglaterra com o manuscrito dos ARCANA arcanissima. Em Londres convive com Robert Fludd , médico e hermetista como ele.
Em 1619 está de regresso à Alemanha, vindo a morrer em Magdeburg em 1622,ao serviço de Maurice de Hesse.

A Atalanta Fugiens data de 1617,e é publicada no mesmo ano sob os auspícios de Jean Théodore de Bry, ilustre gravador,a quem se devem as ilustrações da obra, todas elas de identico cariz hermético.Para além do texto alegórico e da música composta pelo autor, é sem dúvida ao brilho secreto das gravuras que se deve o imenso sucesso que a obra conheceu desde logo.
São 50 gravuras de grande qualidade e inspiração artística e foram consideradas por autores como d'Espagnet como a melhor fonte de reflexão que um adepto podia desejar. Pois "os filósofos exprimem-se melhor e com mais energia através de um discurdo mudo, quer dizer, por figuras alegóricas e enigmáticas do que por textos escritos..."

Fiquemos então com a primeira gravura desta série, que estudos recentes atribuem afinal ao genro de de Bry, Mathieu Mérian.A qualidade e o interesse permanecem os mesmos, apesar da mudança de autoria.

Saturday, April 15, 2006

Mais Beckett



Por ocasião dos 75 anos de Beckett a Ed. Suhrkamp preparou um edição trilingue das suas peças de teatro. O francês e o inglês são do autor, que escreveu sempre nessas duas linguas e a tradução alemã é de Elmar Tophoven, fazendo jus à grande tradição que na Alemanha vem de longe, de dar a conhecer o que há de melhor no mundo, em versões excelentes.
Não se esperou que ele morresse para homenagear o grande dramaturgo.
A edição comemorativa, que pus no blog, reúne num só volume os dois primeiros existentes, aos quais se seguiu um terceiro.Mas esta edição compacta é muito agradável de ler, e é dela que me sirvo mais regularmente.
Ao reler PLAY /COMÉDIE (na versão seguinte) datada de 1964, apercebo-me mais uma vez de como é profunda a escrita dramática de um autor, considerado ,com IONESCO, fundador do TEATRO DO ABSURDO. Mas só absurdo porque o mundo se tornou doentio e absurdo aos olhos de quem o contempla com seriedade. A representação pode levar ao riso, mas joga-se ali o drama universal do teatro do mundo, da COMÉDIA HUMANA ao gosto de um BALZAC, mais do que uma DIVINA COMÉDIA ao gosto de um DANTE. Na Divina Comédia, o poeta /herói é conduzido pelas várias esferas que lhe permitirão descobrir o céu.
Aí guarda a esperança da revelação que o redima, e ao mundo com ele.
Não há redenção em Beckett, há interrogação permanente e uma resposta adiada, em suspenso, como o próprio discurso dos seus textos.
Em PLAY são muito importantes as personagens :3, número simbólico por excelencia, duas mulheres e um homem, que na cena fica colocado entre elas.Aqui temos um homem dividido e uma primeira referencia a essa condição.
As indicações do autor são igualmente importantes, em todas há um sentido a descobrir:

Ao centro, tocando-se, três jarras identicas, de cerca de um metro de altura, das quais saem três cabeças, de pescoço muito apertado no gargalo .
Vistas do auditório temos a mulher 2 à esquerda, o homem no meio e a mulher 1 à direita.
Ficaraõ assim de frente para o público e sem se mexer, durante todo o acto.
São "rostos sem idade"e por assim dizer sem definição, pouco mais diferenciados do que as jarras.

E repare-se agora nesta observação que fará do exercício da peça um verdadeiro drama existencial: "A palavra é-lhes EXTORQUIDA ( o sublinhado é meu ) por um projector dirigido exclusivamente sobre os rostos".
Este Fiat Lux não concede a generosidade do corpo, nem do seu movimento, que é a vida, deixará apenas que no discurso abstruso, que não chega por completo a ser diálogo, se tente encontrar uma articulação que permita que a hora chegue, como diz a mulher 1 : a hora chegará.
Mas o que chega é o negro, com os projectores a apagarem-se regularmente, mantendo aquele "pequeno mundo " sem luz, como no Génesis antes da Criação.
Segue-se uma dança de luz acompanhando ora um ora outro dos que vão esfarrapando os momentos de paixão das suas vidas.
É a luz do Projector que condiciona o discurso, ou seja, a vida naquele instante. Ele "arranca" as palavras ou, ao mudar de personagem,impõe o seu silêncio.
O PROJECTOR, ali a mão de um deus de Babel, faz rodar um discurso que pode repetir-se do modo mais cruel, até ao infinito, como os males da vida.

Thursday, April 13, 2006

Beckett centenario



Samuel Beckett o Mestre da arte do silencio.
Falar não é dizer, não é abrir caminho, não é comunicar.
De algum modo, nas suas peças, falar já é morrer, sem que se saiba, ou ainda pior é já estar morto e dar continuidade ao tique mecânico de um palrar abstruso.
Diz-se que ainda não surgiu ninguém igual a ele... É natural.Os Mestres do silencio não fazem discípulos, não espalham uma palavra que desde logo seria contraditória ao ser seguida. Calam, e porque calam, existem mais do que os outros.

Mas não está perdido de todo o teatro do silencio e do protesto (pois o que é o silencio se não uma forma de protesto?). Quem cala sente, não consente, ao contrário do que reza o provérbio.Quando muito, teme.
Harold Pinter é o outro expoente da dramaturgia de lingua inglesa que podemos colocar, com Beckett,no topo da pirâmide dos grandes.
Não que eles se importem com isso, apesar dos Nobel com que foram agraciados.É a sua virtuda que dignifica o prémio.Sem prémio eles seriam na mesma o que são.

EN ATTENDANT GODOT foi uma peça escrita e publicada em francês,em 1952.Teve nos anos seguintes a tradução alemã e a versão inglesa feita pelo próprio Beckett e publicada em 1955.
Ainda hoje se pode ler como a Bíblia dos tempos modernos,um tempo que continua a ser vivido em suspenso, eternamente adiado e adiando o entendimento da condição humana.
Não é por acaso que o primeiro acto termina com um diálogo de Estragon e Vladimir que se repete nos mesmos termos no fim do segundo acto e fim da peça, que desse modo nos fecha no circulo que é a roda da vida que a peça representa. Uma vida que nos anos do após-guerra se revelava baça, sem sentido, ou com a esperança de um sentido ainda por encontrar. Os traumas poderiam ser esquecidos por momentos na agitação das noites do quartier Saint-Germain, mas as feridas custavam a sarar.

"Estragon - Então vamos ?

Vladimir - Vamos embora.

(Não se mexem)

Cai o pano."


Em PLAY deixa-nos com a interrogação final, posta na boca do Homem : "Ao menos sou ...visto ? "
E a peça volta ao princípio, segundo a indicação do autor, e volta o HOMEM a repetir a mesma interrogação: "Ao menos sou visto ? "
É o olhar do outro que nos concede a existencia e a nós a consciencia dela.

Monday, April 10, 2006

Portrait de Pablo Picasso, por Prevert




"O coreógrafo chama-se Picasso, o músico também.
É ele quem desenha as figuras, com a luz e com as tesouras, como também de resto com os lápis, os pincéis e as mãos-de-obra, de obra-prima, seus utensílios habituais.
E quando desfigura, figura ou transfigura, a natureza não lhe leva a mal.
Ela é natureza, secreta e pública, e ele é como ela.
É um filho natural."

in DIURNES...

Prevert Sempre


Citações úteis:
" Le sublime est corrosif "

"Il ne suffit pas d'avoir de Belles-Lettres
pour écrire un vrai alphabet "


E uma Entrevista:
L'INTERVIEW

"- J'ai lu les Bucoliques, les Provinciales,
les Misérables, les Illuminés,
les Diaboliques, les Désenchantés,
les Déracinés, les Conquérants,
les Indifférents...
-Et que faut-il lire maintenant?
-Les Emmerdants, il faut bien
lire avec son temps ! "

Fernando Pessoa


Na citação de Eros e Psique parti da leitura e edição feita por Maria Aliete Galhoz, uma das primeiras estudiosas e divulgadoras da obra do poeta.
in FERNANDO PESSOA,OBRA POÉTICA, ed.AGUILAR,Rio de Janeiro, 1972.As notas são neste volume um precioso auxiliar, de que também me servi, para o poema.
Assim, podemos ler que Eros e Psique foi publicado pela primeira vez na revista PRESENÇA, nos. 41-42, em Coimbra, Maio de 1934.
Respondendo a uma pergunta do seu amigo Adolfo Casais Monteiro, diz Pessoa que a citação colocada em epígrafe é tradução do Ritual latino do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, "em dormência", como se diz, desde 1888.
Mas agora acrescento eu : repare-se que a data é a do nascimento do poeta, e que ele foi sempre um "criador" de figuras e factos que servissem o seu propósito, ora artístico, ora filosófico, ora simplesmente provocatório (como fez, segundo ele mesmo confessou, com Gaspar Simões, autor da primeira grande biografia de Pessoa).
Neste caso, é bem possível que o Ritual que cita seja antes o esboço de um sonho: o de recuperar a antiga Ordem do Templo, que D.Dinis, salvando-a da extinção pedida pelo Papa em Bula de 1318, transformará, em 1319 em ORDEM DE CRISTO.
Seja como for,o nosso poeta conhece bem, quer a dimensão iniciática dos símbolos e mitos, quer os processos de Jardinagem da Alma dos alquimistas, quer ainda as pulsões do inconsciente de que Freud se ocupara (também de Freud encontramos livros na sua biblioteca).
Por muita da poesia hermética de Pessoa vemos passar os saberes que a ele o motivaram em especial: o neo-platonismo, o gnosticismo, o rosacrucianismo, a alquimia já citada na sua dimensão psíquica reconhecida, a maçonaria, a par de um ideal nunca abandonado de MESSIANISMO utópico, bebido nas TROVAS do Bandarra e na História do Futuro do Padre António Vieira.
Tive ocasião de citar JOEL SERRÃO a propósito deste messianismo, no meu estudo sobre O PENSAMENTO ESOTÉRICO DE FERNANDO PESSOA, ed, ETC:,1990.
Num dos documentos que transcrevo aí, do Espólio ( 53B-72 a 74 ) escreve Pessoa sobre a DESTRUIÇÃO DO TEMPLO.É um rascunho ainda, mas já nele se notam as suas interpretações e em parte o desejo de ajudar a uma reconstrução-sonho de todo o iniciado.
"A destruição do Templo quer dizer a RUINA dos mistérios e o desastre que foi o derramar pelo mundo e pela humanidade das doutrinas esotéricas, que por natureza não se destinam a ser divulgadas."

E adiante conclui, de algum modo contrariando o que pretende fazer, que" a iniciação nas sociedades secretas é uma mímica deteriorada, uma figuração em plano inferior da iniciação verdadeira.O ceremonial maçónico,por exemplo, como o trabalho alquímico, é SIMBÓLICO; não significa nem mesmo o que os 'iniciados' neste nível supõem que ele significa".
E ainda, para concluir: "O LOGOS pelo qual Deus criou o mundo segundo a doutrina secreta, que é a INTELIGÊNCIA, não é 'aquela' Inteligencia, é a CIENCIA sem Inteligência, o VERBO, isto é, a EXPRESSÃO."
Mais
Bibliografia: F.Pessoa e a Filosofia Hermética, ed Presença, 1985

Friday, April 07, 2006

Artaud sobre van Gogh

Diz van Gogh:
" tentei exprimir com o vermelho e o verde as terríveis paixões humanas"

" as coisas falam por si "

Diz Artaud :
" tudo isto, no meio de um bombardeamento meteórico de átomos que se deixassem ver grão a grão, prova que van Gogh pensou os seus quadros como um pintor, é certo, e exclusivamente como um pintor, mas que seria, por isso mesmo,
um músico formidável "

Citado por Prévert em Spectacle, onde escreveu teatro, poesia, pequenos textos de reflexão e citações críticas como estas.
.

Para o Pedro


Aguardo com impaciencia essas canções de Prévert.
Ficarás com o J.Kosma, que eu conheci a passear o seu basset nas ruas de Saint-Germain, como um dos que amaram e serviram um dos mais belos poetas ao mesmo tempo comovente e sardónico, que acompanhou a minha juventude.
Reparo que fui tão feliz que chega a ser escandaloso.
Depois de ler Prévert passei a escrever teatro, o que até então não tinha acontecido.
Vou traduzir um pouco do que tenho aqui, e depois blogo. Quem sabe se ainda voltas a compôr mais coisas dele.
Aqui vai o poema com que ele "fecha" o livro SPECTACLE, como quem fecha a vida, o teatro de cada um :

FÊTE /FESTA

Nas grandes águas da minha mãe
nasci eu no Inverno
numa noite de Fevereiro

Meses antes
em plena Primavera
houve
um fogo de artfício entre os meus pais
era o sol da vida
e eu já estava lá dentro

Eles verteram-me o sangue no meu corpo
era o vinho de uma fonte
e não o de uma cave

E também eu um dia
tal como eles, partirei

Jacques Prevert, FATRAS



Prévert, nesta obra de 1966, reúne uma série de colagens, acompanhadas de textos de sabor muito característico,oscilando entre o lirismo e o sarcasmo .
O texto que acompanha esta colagem é o seguinte:


" Il ne suffit pas d'avoir de Belles-Lettres
pour écrire un vrai alphabet. "


E o título que Prévert lhe deu não é menos significativo:
"Les Illusions Perdues" .

A bom entendedor...Mas ainda há quem leia Jacques Prévert , com os seus poemas de amor pungente, que foram cantados pelas divas de Saint-Germain nos melhores tempos dos existencialistas ? E quem leia as suas peças, as suas prosas de humor negro, a celebração do corpo, que ele também soube louvar em Picasso, escrevendo sobre as gravuras do Minotauro ?
Em SPECTACLE, publicado em 1951, encontramos "Eaux-fortes de Picasso" , e "Aux Jardins de Miró ".
Os artistas conheciam-se, conviviam, amavam-se de verdade, celebrando por cafés e teatros , nas casas e ateliers uns dos outros, a imensa alegria de viver, tendo escapado a uma guerra terrível .
O prazer das palavras em liberdade ia sarando as feridas.

Fatras, La Belle Vie

A primeira colagem, ao alto, tem por título L'Hotel des Ventes.
E segue-se um poema:

A BOA VIDA

Quando a vida acaba de brincar
a morte põe tudo no lugar

A vida diverte-se
a morte limpa a casa
pouco importa o pó que esconde sob o tapete

há tantas coisas belas que se esquece de arrumar .

Wednesday, April 05, 2006

Retrato de Michaux por Magritte




No Cahier de L'HERNE dedicado a Henri Michaux (Paris, 1966) encontraremos uma extensa e variada informação sobre a vida e a obra de um dos mais marcantes escritores, pensadores (foi dos primeiros a viver e a pensar o abismo da mescalina) e pintores do nosso século XX, o século por excelencia dos desafios positivos e negativos da alma.
Entre os colaboradores do Caderno estão personalidades como Jacques Maritain, Jean Paulhan, Paul Celan (este com um poema), Jacques Prévert, que narra um encontro, Allen Ginsberg, JorgeLuis Borges, Ungaretti ; para além destes textos, sob a rubrica Estudos, encontramos Maurice Blanchot, Stéphane Lupasco (os cientistas da época também tinham algo a dizer ), Robert Bréchon (o nosso fiel "pessoano" ) Gilbert Lascault, etc.
Seguem-se, no Índice, os colaboradores do Estrangeiro: Alemanha, Estados Unidos, Japão, México, Polónia, e Suécia.
Depois os textos de Michaux, os pintores que o retrataram ou sobre ele escreveram, como Magritte, aqui reproduzido, ou André Masson, que lhe era muito próximo, até na própria experimentação gráfica, Asger Jorn, que já consta deste blog, Matta, e outros.
Bom será mesmo ler o Caderno, que contém ainda uma antologia de documentos vários e uma preciosa Bibliografia.
Claro que nunca nada se poderá substituir à leitura directa, sem filtros de ninguém, de um grande escritor.
Eis como termina um dos seus longos e belos poemas, escrito entre 1964-1966:

" Tu vas continuer sans nous. Terre des hommes
tu vas continuer, toi "

( in LIEU SUR UNE PLANÈTE PETITE )


Ou, noutro texto, em prosa:

" Etrange est notre sol, étrange est notre air. Il nous retire notre chaleur. Il nous retire nos couleurs. L'eau qui nous permet de vivre, nous fait lentement mourir. "

( in NOTRE PAUVRE REINE )

Sugestões: LA NUIT REMUE,1933 ; AILLEURS.Voyage en Grande Garabagne ,1967 ; MISERABLE MIRACLE, La Mescaline. 1972 ;
ÉMERGENCES-RÉSURGENCES , 1972 ; CHOIX DE POÈMES, 1976 ;TEXTES SUR LA PEINTURE, 1978 ;
e há mais, muito mais...nas ed. FATA MORGANA.

Só em nota muito à margem, certamente que o Miguel Sousa Tavares leu, ou pelo menos conhece de nome , do mesmo Michaux, a obra ECUADOR, de 1929, reeditado várias vezes e acrescentado e ECUADOR;JOURNAL DE VOYAGE.

Para terminar, de verdade, o mais importante: a edição das Obras Completas de Michaux, na PLÉIADE,1998.

Monday, April 03, 2006

Picasso no Labirinto



Palau i Fabre foi um dos grandes amigos de Picasso e um dos melhores conhecedores da sua obra, que acompanhou de perto quando dos seus tempos de Paris,onde dirigiu o Instituto Espanhol.
É de sua autoria um importante ensaio sobre a série de desenhos do Minotauro (figura mítica com a qual o pintor muito se identificou ) e que consta de um volume colectivo dedicado ao tema do Labirinto (Centre Culturel Portugais,Fondation Gulbenkian,Paris,1985).
O Minotauro surge na obra de Picasso, escreve Palau i Fabre com uma intenção puramente estética "em aparencia", no ano de 1928.Dá-se então uma "feliz convergencia de Cubismo, Colagem, união do Clacissismo e do Surrealismo".
Mas, nota o estudioso ,repara-se a-posteriori que este quadro, de que haverá uma série um pouco mais tardia,foi executado dez anos depois do casamento de Picasso com Olga e um ano após o seu encontro com Marie-Thérèse e que assim se reveste de um significado muito especial na sua vida, anunciando as interpretações que faz em 1933.
O convite que lhe é dirigido por Albert Skira para fazer a capa do primeiro número da revista MINOTAURO "desencadeia o reaparecimento e a implantação desta figura mitológica na obra do artista".
Os minotauros que se sucedem serão muito diferentes, ainda que portadores da forte energia sensual e sexual que o mito comporta, e também fazem parte da cultura taurina ( paixão de Picasso como de Hemingway ). São figuras impregnadas do que Palau define como " atitude geral do surrealismo e dos seus postulados subversivos" a que o artista tinha aderido. Nesta fase o minotauro surge belicoso, de punhal em riste, ameaçador.
O labirinto de Picasso é estético, na intenção, e "plástico" como se disse.Contudo há nele uma inquietante solidão, de que o veremos posteriormente libertar-se (quando o próprio Picasso se liberta de Olga, e Marie-Thérèse tem uma menina sua).

Numa série de gravuras feitas a partir de 17 de Maio de 1933, Minotauro humaniza-se, e ultrapassa a condição animal, quase selvática de algumas das anteriores. É certo que sempre rodeado de figuras femininas, que seduz e a ele se entregam.
O artista "apropriou-se do mito" ,da personagem tal como a tinha vivido antes.
Diz Palau: " Minotauro permite-lhe esvaziar-se,manifestar-se, e compete-nos a nós penetrar no seu labirinto".De que modo? Tentando, pela contemplação da beleza e da força criadora das gravuras, decifrar o que de algum modo será sempre uma linguagem cifrada, pois nunca por completo a obra de arte é explicável e as referencias aos pormenores biográficos se não forem ultrapassadas serão documento, mas não arte. Na sua arte o artista esconde-se, mais do que se revela.

Em 1934, nova série de Minotauros, que Palau estuda cuidadosamente em relação com a vida pessoal de Picasso, pois é em parte dela que o Minotauro recebe ora a força e a alegria, ora a melancolia, ora o dom do rejuvenescimento e de redenção dado po Ariadne. Deixo também no blog esta última imagem, em que se vê um minotauro envelhecido, cego como o Fausto de Goethe no fim da vida, e agora conduzido por uma criança que tem na mão um ramo do trigo que colheu e será, supomos, o alimento de vida que a terra, (a anima) do artista voltará a receber.
Não é por acaso que o nome dado à filhinha é Maya.

Saturday, April 01, 2006

Wang Wei


Para uma viagem de sonho por meio de um livro de literatura e arte, recomendo de FRANÇOIS CHENG (ed. e trad.)L'ESPACE DU RÊVE,Mille Ans de Peinture Chinoise,Paris 1980.

A este maravilhoso trabalho de pesquisa devíamos acrescentar no subtítulo também a literatura. Pois cada reprodução é antecedida de um poema inspirador.
É certo que nos ideogramas já se encontram reunidos de algum modo a literatura e a arte. Pois a caligrafia chinesa é arte na medida em que reúne conceito, ou ideia, e imagem.
A melancolia suave que percorre alguns dos poemas escolhidos pelo autor teria agradado a Goethe e a muitos dos românticos do séc.XVIII, do chamado primeiro romantismo , de que Novalis é um dos expoentes. Cedo viria a moda do orientalismo, mas não com este cunho filosófico , taoista, de que os poemas deste livro dão testemunho.

" Ao fim do dia só gosto da solidão.
Longe do meu espírito a vaidade das coisas.
Despojado de riqueza, resta-me a alegria
De regressar à minha floresta antiga.
A brisa dos pinheiros desfaz-me o cinto.
A lua acaricia os sons da minha cítara.
Qual é, perguntais vós, a derradeira verdade?
Canto de pescador, nos canaviais, a afastar-se..."

( Wang Wei, séc. VIII )

A pintura escolhida para acompanhar o poema é posterior, da autoria de Wang Meng ( 1308-1385 ).São cabanas, no coração da montanha,com pescadores ao longe no lago de canaviais.