Wednesday, April 23, 2008

Henrique Chaudon


Há fantásticas coincidências: no dia em que vou ao Teatro São Luiz ouvir as Valsas Brasileiras de Francisco Mignone, recebo o livro de poemas de Henrique Chaudon, meu amigo transatlântico.
Nas valsas encontro o som dos chorinhos, atravessado por Chopin, entre outros mais modernos europeus. Mas o que fica na alma é essa mistura da tradição e do lamento brasileiro com o exercício ora romântico ora modernista das composições de Mignone.
Da pianista Alexandra Mascolo-David escreveu o crítico do Washington Post:
" a splendid pianist, refined, searching and expressive, and her playing is loaded with insight and interpretative detail".
Não poderei dizer melhor.
Quanto ao Henrique, seus poemas são para reler devagar, depois de os ter lido.Também nele encontro o fundo cruzar de linguagens: da paisagem e dos dias brasileiros de sua morada, suas pessoas, seus lugares preferidos, com o trabalho de sublimação que opera na palavra poética. Seu dizer é directo, despido, ainda que emocionado.

Poema do mais Profundo

" Meu coração é campo extenso
onde dormem flores, trigo, ervas.
Meu coração é lago tranquilo
onde passam nuvens, o sol, a lua.
Meu coração é fonte
regato
rio.

Meu coração é poço.

Lá 
do profundo silêncio
posso mirar as estrelas ".

A terra, a água, o ar (céu ) - os elementos da vida natural caminham para uma simbiose na meditação que propõe o último verso: o poço do profundo silêncio onde pode mirar as estrelas.
Walt Whitman está na epígrafe, apontando essa sensualidade terreal, mas os poetas são transformadores, alteram tudo o que tocam, e poderemos encontrar também aqui  a marca de uma  sabedoria oriental, que a imagem do poço condensa, como no Yi King:
n. 48 Tsing, o Poço:
O poço significa união.
O poço não aumenta nem diminui, pode mudar-se a cidade, mas não pode mudar-se o poço... a acção de beber a água fresca do poço repousa na sua posição central e correcta. 
Aqui a noção de centro imóvel é o mais importante, e é esse sentimento que os versos finais do poema de Henrique nos transmitem. 
Noutro poema escreve:
"...
É hora de ficar parado
sentado imovelmente na cadeira.
Vejo a noite em me redor:
desgasta a pedra, os campos,
meus cabelos, tudo quanto toco.
Não me esforçarei agora.
Sentado aqui nesta cadeira
ouvirei seu falar mudo e convincente:
ensina mais que os longes todos, mais que os alfarrábios.

Mais,
muito mais".

Do panteísmo latente à observação realista de um Erich Fried ou ainda, no fecho que é súmula, o mais e o menos de um Celan quando escreve :
"tudo é menos do que/ é/ tudo é mais" ( in Cello-Einsatz)
Celan do fundo da sua noite da alma, Chaudon do fundo da sua melancolia e abandono ao real ( o real é o destino). Um pouco como nas valsas brasileiras. 


 
 

Monday, April 21, 2008

Corpus Jan Fabre



Obra magnífica, sobre o percurso artístico de um grande artista, Jan Fabre.
Como nos diz  Luk van den Dries, no prefácio,a obra de Fabre incarna uma das formas exemplares do teatro do nosso tempo.
Teatro radical, implantado em profundidade: guarda o eco da grande tradição, os primeiros rituais, o teatro grego, os dramas da Idade-Média, Renascimento e Barroco.
Um teatro feito de memória, actualizada.
O livro é uma compilação de ideias, antes de mais. Mas ainda de palavras e imagens. Contempla os segredos do trabalho do palco, à medida que  vai sendo preenchido com os seus corpos próprios: dos actores, e do guia que é Fabre, mesmo no improviso, ou sobretudo no improviso. O melhor improviso é o que foi mais profundamente reflectido, preparado. Não há arbitrariedade na grande arte, quem não perceber esta lógica da criação original, está longe de poder vir a ser um criador. 
Diz Luk que o seu livro tenta penetrar " na alquimia da criação". Fabre é o grande alquimista, o grande transformador que sublima a imperfeição da existência no corpo. Mas esse é o desafio: a imperfeição do corpo, que o seu trabalho alquímico em todos os sentidos ajudará a ultrapassar. 
Ao abordar a imagem do corpo na obra de Fabre, Luk aborda de igual modo uma concepção moderna da estética do teatro.Passo a citar, lembrando que muito do que é dito se pode igualmente aplicar à dança, como arte suprema do corpo no espaço.
" O teatro é uma arte contaminada.Uma arte contaminada pela vida.E trazida por actores que não podem subtrair-se à sua forma humana, seu peso, a envergadura dos seus membros, seu sexo.Aparece um corpo, aparece   sempre um corpo, e nós olhamos para ele.Este corpo fala, sua, liberta uma aura, atrai ou repele. O teatro é um media carnívoro. Alimenta-se de corporalidade, de corpos que não se podem controlar, que são ignorantes das leis e excerbam ingenuamente as suas próprias paixões. Corpos que querem tudo e cada vez mais. Namorando perigosamente as fronteiras do impossível, desafiando as interdições da moral....O teatro é um cadafalso a partir do qual os corpos se lançam no abismo". 

Monday, April 14, 2008

Armando Silva Carvalho



O seu último livro O Amante Japonês, na editora Assírio e Alvim.
Lido o poeta, ler os livros que ele lê:
Camilo Pessanha
Pessoa-Campos (mas quem lê este, lê todos...)
Herberto Helder
Novalis
William Blake
Luiz Pacheco
Carlos de Oliveira (sim Finisterra, sempre...)
Manuel de Freitas
Sá de Miranda
...

De um roteiro mais íntimo e selvagem, a um roteiro não menos íntimo e selvagem (Wagner também lá está, com a sua vertigem musical, ambição desmedida que só em Veneza terá fim) Armando oferece neste seu livro os poemas que só ele sabe erguer, como

"Altos ciprestes, esses poemas
Que se perfilam ao longe na planície escrita dos meus dias.
Negras presenças do mundo, dos homens, da rosa
Incendiada nas palavras. 
...
Versos do começo e do fim
Fábulas de nervos ao redor do cérebro
Quem vos traz aqui ao sabor do vento imoderado
De encontro ao vidro sujo do meu rosto e do carro ?"

Viaja-se, neste livro.
Num carro que tem asas e que voa, por vezes desamparado, de lugar em lugar. Mas o poeta sabe qual é o seu ofício, qual é o seu lugar.
Uma palavra acesa na fímbria do tecido, na pétala da rosa ou na espuma do mar. Nem sempre se dirá a luz, mas sempre sempre esse bater convulso do sangue no coração do mundo.



Friday, April 04, 2008

Ana Marques Gastão, Lápis Mínimo



Em edição cuidada, como todas aquelas de que Piedade Ferreira e Rogério Petinga se ocupam, saiu na colecção Oceanos mais um livro de Ana Marques Gastão, 
LÁPIS MÍNIMO.
Já a côr escolhida para a capa indica a suave melancolia que encontraremos nos seus versos, muito próximos de uma sensibilidade oriental, mística por vezes e igualmente  discreta, ainda que directa.
Há uma grande contenção e elegância de alma na escrita de Ana, que me faz lembrar a Princesa Shikishi , filha do Imperador Goshirakawa, que serviu como vestal do templo e deixou um legado de escritos melancólicos de grande luminosidade e beleza. Foi no seu tempo considerada  uma das glórias da criação poética, e ainda hoje quem a  lê não pode deixar de se encantar :é a alma que fala, na sua simplicidade e nudez. 
Deste século XII japonês passamos, com o mesmo encantamento fluido, para os aforismos de Ana Marques Gastão.
São feitos de prosa poética, e um Michaux, por exemplo, se fosse vivo nunca lhes negaria o título de poemas. 
Poemas escritos, como ela diz, com lápis mínimo: sentimentos-sugestões-imagens-reflexões em tom menor, usando agora uma linguagem musical.
Há música nos seus textos, no ritmo da sua escrita.
Não é formal, é balançada, mesmo quando alguma suspeição ou amargura a atravessa. 
O olhar sapiente (consciente) distancia-se, de si e dos outros, no acto de (se) escrever.Basta evocar Pessoa, Michaux, Celan (que muito admirava Michaux, considerava-se seu discípulo) para percebermos que não há ingenuidade no acto de criação, por muito que a busca da palavra no tempo nos absorva e não cesse. Os poetas perdem, muito cedo, o olhar da infância, a relação entregue e disponível com o mundo. E é no esforço da Ponte que vai surgindo a Obra. As palavras são o seu caminhar.
Quando Ana escreve:
"Roubo-te à linguagem, só assim serás real" (P.43) diz menos e diz mais (Celan) do que aquilo que diz e ficou dito. 
Nunca nada fica dito, as palavras levantam vôo, seguem o seu caminho oculto, irão perder-se ou encontrar-se mais longe, noutro espaço, do "Interior Longínquo" de que falava Michaux.
Com Lápis Mínimo desenha-se um espaço-tempo ideal, de apelo e rejeição, de meditação-aceitação do que em si mesmo, pela vida e pela Obra, o autor vai descobrindo: " Que na memória fiquem não só os lugares, mas também as horas"(p.42).
Escrever é descobrir, mais do que inventar: o segredo está lá, no interior dos mandalas. 
Ana pode dizer "Sou uma caçadora de emoções"(p.84). Mas sabe que é transformadora, é esse o seu segredo. Esse o fio que nos leva, de página em página, à procura de mais: sabemos  de onde partiu ? Pois queremos saber onde irá chegar: rasgada a pele, onde o Outono, o osso do Inverno, a Primavera do coração que bate.
Bem pode dizer, como nos diz no fim:
"A palavra é o meu nome. A palavra quer ser outra de mim, está além".

Tuesday, April 01, 2008

Henri Michaux


De 2005, mas que nunca perderá actualidade, o estudo de Robert Bréchon sobre Henri Michaux:
HENRI MICHAUX, La poésie comme destin, ed. aden.
Proposto como Biografia, é mais do que isso.
Bréchon, já no seu tratamento da obra de Fernando Pessoa nos habituara a uma linguagem erudita, de bom conhecedor (porque amando a obra daquele que nos apresentava) sem contudo perder a elegância, a fluidez do discurso.
O que fazia, no caso de Pessoa, como agora no caso de Michaux, o exercício do estudo e da leitura algo de muito sedutor. 
Os franceses são sedutores e Bréchon, neste seu livro, é sedutor em extremo. Abre-se, lê-se sem mais interrupções, capítulo a capítulo, até chegar ao fim.
Conta, como que em conversa de mesa de café, como descobriu Michaux, como o leu pela primeira vez, como veio depois a conhecê-lo pessoalmente, sem que por isso se tenham tornado de facto amigos íntimos.
Com que facilidade, morto Michaux, celebrado no mundo, editado, reeditado, traduzido, exposto em galerias e museus (era pintor e a sua obra neste campo não era de menor importância) poderia Bréchon fazer desses encontros algo de superiormente marcado e marcante, para ambos:
 Mas não; de honestidade intelectual exemplar, parte dessa elegância de ser de que falei, Bréchon diz simplesmente que Michaux a ele o impressionou e arrebatou pela obra, como pela personalidade, só aparentemente frágil (tinha um sopro cardíaco), mas que nunca chegaram a ser amigos íntimos, no pleno sentido da palavra. E conta o episódio dos convites para tomar chá, que aceitava, acompanhado às vezes pela sua mulher:
"Il la recevait avec une exquise courtoisie, devant une tasse de thé presque incolore.
Elle était fascinée par l'extrême distinction de cet homme, proche de la soixantaine...
d'une présence légère et diaphane, avec pourtant des éclats de voix, des chuchotements, des rires étouffés".
A alegria dos encontros perdia-se à medida que se aproximava a publicação da obra prevista de Michaux. Era, no relacionamento com os editores, um autor difícil:
 "J' étais pris entre les exigences de Mallet (o editor) qui avait conçu pour les volumes de la collection un plan type auquel chaque auteur devait se conformer, et celles de Michaux, dont le mot préféré était non".
E segue a saborosa narrativa, entremeada com referências à obra, marcando de forma sensível os grandes temas que seriam para sempre centrais e vitais no decurso da vida de um criador que, ao contrário do que sempre julgara, viveria até bastante tarde. 
Um dos poemas citados logo de início põe a nú essa preocupação, de hipocondríaco-poeta, com o corpo:

Je suis né troué

Il souffle un vent terrible.
Ce n'est qu'un petit trou dans ma poitrine
Mais il souffle un vent terrible.
(...)
Ah! Comme on est mal dans ma peau!
(...)
Et c'est ma vie, ma vie par le vide.
S'il disparaît, ce vide, je me cherche, je m'affole et c'est encore pis.
....
Nasci furado

Sopra um vento terrível.
É só um buraquinho no meu peito
mas sopra lá dentro um vento terrível.
(...)
Ah, como se está mal na minha pele!
(...)
E é a minha vida, a minha vida pelo vazio.
Se desaparece, este vazio, procuro-me, assusto-me e é ainda pior.

Bréchon refere-se a este poema e a um outro (Nausée, ou C'est la Mort qui Vient), como expressões do "sofrimento ontológico de Michaux", ao fim e ao cabo "o único tema da sua poesia"; e acrescenta: 
"il souffre du manque d'être, qui est l'envers d'un excès d'être" (ele  sofre da falta de ser, que é o reverso de um excesso de ser). 
E não dizia já Paul Celan, que "tudo é menos do que é/ tudo é mais " ?
Em Michaux tudo é mais.
E Bréchon, poeta, além de ensaísta notável, é o guia perfeito para esta leitura-aventura de alma.




Primavera no São Luiz