Friday, January 16, 2009

Meditações III


Sobre o simbolismo alquímico do abutre.
Dom Pernety, no Dictionnaire Mytho-Hermetique, obra do século XVIII (Bibliotheca Hermetica,1972),que contém "a explicação das alegorias fabulosas dos poetas, as metáforas, os enigmas e os termos bárbaros dos filósofos, explicados" refere-se deste modo ao abutre:
"Ave de rapina muito voraz,aparentada à águia. Os Antigos tinham consagrado o abutre a Marte e Juno. Apolo foi apelidado de Vulturius, ou Apolo dos abutres. A Fábula representa Prometeu agrilhoado a um rochedo do monte Cáucaso, a ser devorado por um abutre, por ter roubado o fogo do céu. ...Hermes disse ' eu sou o abutre pousado no alto da montanha, gritando sem cessar, ajuda-me que eu te ajudarei. E ainda: eu sou o branco do negro, o citrino do branco, e o vermelho do citrino, para indicar as sucesssivas cores da Obra" (p. 366).
Na Atalanta Fugiens, de Michael Maier, obra do século XVII, encontramos esta gravura de um abutre alquímico, segurando uma fita que diz: ego sum niger albus citrinus et rubeus: eu sou negro, branco, amarelo e vermelho, definindo as cores da Obra alquímica de transformação.
O negro ( a nigredo da alma de que nos fala Jung, o espectro da depressão a meio da vida) marca o início da obra de transformação; o vermelho, rubedo, a conjunção final, muitas vezes representada pelo abraço do sol e da lua, ou de outro par de opostos, que podem ser o rei e a rainha, o dia e a noite, o céu e a terra, o fogo e a água, etc.
O Epigrama que acompanha a gravura reza assim:
No cume duma alta montanha
Um abutre grita sem cessar: dizem-me negro e branco;
Sou ainda amarelo e vermelho e não minto.
Sou também o corvo que sabe voar sem asas
Na noite tenebrosa ou em pleno dia.
Um ou outro será a cabeça da tua obra.

Entenda-se :
corvo negro ou abutre serão a imagem da obra que o adepto persegue.
Um, porque negro, marcará o início ; o outro, porque de múltipla coloração, o seu progresso até ao momento da conjunção final, que a rubedo confirma. 
O interessante, neste jogo das gravuras alquímicas, é que se abrem, ampliando o sentido, como acontece nos haiku,  poemas também eles condensados, e em evolução a partir de um dado momento fundador. 



Meditações II



Continuando com os haiku de David Rodrigues: é interessante verificar como o seu trabalho poético se faz do particular para o universal, exigindo do leitor uma capacidade de meditação própria, que o faça ampliar os múltiplos sentidos, como um alquimista (neste caso da metáfora viva) no trabalho da Pedra, que tem de passar pela fase da amplificatio para que se torne de verdade completa e actuante. 
O poema, sobretudo nestes casos, possui uma carga simbólica tanto mais  forte quanto mais arquetípica se revelar; no poema se faz a ponte, no poema se unem os extremos por vezes conflituosos como nos ensinam o Yi King, ou o Tao Te King, nascendo desse jogo de oposições subtis uma nova espiritualidade, um novo horizonte de perfeição (nunca alcançado). Assim as esferas naturais, do homem no seu mundo e do universo na sua essência e nas suas manifestações, se abrem à nossa sensibilidade e ao nosso entendimento.
Dizia eu do particular ao universal: é esse o segredo do poema sobretudo quando, como nos haiku, se vive basicamente de uma ideia, de um sentimento, de uma imagem-força, a tal metáfora viva de que fala Ricoeur. No caso dos poemas de David Rodrigues, isso torna-se particularmente evidente: da romãzeira contempla a romã, ou o seu bago; da oliveira descobre as azeitonas, olhos escuros contemplando aves, etc. Curiosa é a metáfora do barco / abutre (n.69,in Estações Sentidas): 

Na madrugada
o barco escuro emboscado
como um abutre.

A metáfora da vida humana, ou do corpo humano, que é frequentemente o barco,veja-se a Narrenschiff, de Sebastian Brant, ou o Bateau Ivre de Rimbaud, conduz, na sua união à imagem do abutre ameaçador, não à vida, mas à morte, à sua ameaça latente. 
A meditação oferecida é de cariz filosófico, como a que se vê na doutrina taoista, milenar, e que ainda hoje faz sentido, como busca constante e humilde do único bem precioso que se pode tentar adquirir: a sabedoria, consistindo no conhecimento de si mesmo, limite e limiar. 
Na gravura de cima, a barca dos imortais afrontando o mar revolto da vida, podemos ver a garça, no seu vôo branco de sublimação anunciada.
 Mas no caso de David, as garras do abutre evocam, indirectamente, outros perigos, outros receios, como o canto e  as garras das míticas sereias de que Ulisses se libertou.
Há muitos tipos de ameaça à fragilidade da vida: a calmaria do poema de Goethe não é menos assustadora. Se no mar do haiku de David quase se ouve o barulho ameaçador da onda, ou do vôo cruel do abutre, no mar de Goethe é o silêncio que traz o pressentimento de uma não menos temida morte próxima:

Calmaria
Reina profunda paz na água,
Imóvel o mar repousa,
E o barqueiro vê, com ânsia,
A calma superfície à sua volta.
Nenhum ar de nenhum lado.
Terrível quietude mortal!
Na imensidão da distância
Nem uma onde se move.

Goethe, o velho sábio, conhecia bem o pensamento oriental e a filosofia hermética: disso dão testemunho as suas obras de grande vulto, como o Fausto , e outras, menos conhecidas, mas igualmente importantes, como é o caso do ciclo do Divã Ocidental-Oriental:
Se estou só
Não posso estar melhor.
O meu vinho
Bebo-o sozinho,
Ninguém me proíbe de o fazer,
E tenho assim os meus próprios pensamentos.

Deste vinho, da solidão criadora,  bebe David Rodrigues, mostrando as afinidades, que Goethe chamaria de electivas (como na sua novela)entre os tempos, as vozes, as harmonias  do canto melodioso das esferas.

Termino com uma evocação de John Blofeld, autor marcante, na década de sessenta, que viajou pela China pre-comunista, visitando mosteiros budistas e taoistas, e que de um sacerdote taoista recebeu a seguinte explicação:
"A nossa doutrina não é uma religião, mas um caminho para o Caminho (Tao)...os nossos yogas e meditações começam por gerar um estado de tranquilidade, de modo a que, no silêncio dos nossos corações, possamos apreender o Tao dentro,à volta, acima e abaixo de nós.Procuramos alimentar a nossa vitalidade e prolongar a nossa vida para ganharmos tempo e podermos, com a sublimação necessária, atingir os nossos mais altos propósitos...Assim se chega à preparação da Pílula Dourada,que alguns, mal informados, julgam que se obtém por processos alquímicos, quando na verdade só se obtém no interior do próprio corpo..."
Pensamento idêntico é expresso por um filósofo hermético ocidental, Robert Fludd, no século XVI:
" Transmutai-vos de seres mortais em pedras filosofais vivas...cada homem piedoso e justo é um alquimista espiritual".  
O mesmo se pode dizer, sem ofensa, dos poetas cujo imaginário busca, na contenção do poema um caminho outro, que não o do falar disperso, avulso, sem sentido.

Mais leituras: 
J.C.Cooper, Chinese Alchemy, The Taoist Quest for Immortality, 1984



Thursday, January 15, 2009

Meditações I



A leitura de dois livros de David Rodrigues - ambos de Haiku ordenados ao sabor das horas, dos meses, das estações do ano, do tempo enfim, pois é do tempo que as formas surgem e a ele regressam, no seu eterno ciclo - trouxe-me à memória o poema de Borges sobre uma versão do Yi King, a Bíblia do oriente que Richard Wilhelm e Carl Gustav Jung deram a conhecer ao ocidente:
Para una versión del I King
El porvenir es tan irrevocable
Como el rígido ayer. No hay una cosa
Que no sea una letra silenciosa
De la eterna escritura indescifrable
Cujo libro es el tiempo. Quien se aleja
De su casa ya ha vuelto. Nuestra vida
Es la senda futura y recorrida.
El rigor ha tejido la madeja.
No te arredres. La ergástula es oscura,
La firme trama es de incesante hierro,
Pero en algún recodo de tu encierro
Puede haber una luz, una hendidura.
El camino es fatal como la flecha.
Pero en las grietas está Dios, que acecha.

A lição, continuada no conjunto de ensaios dedicados ao Yi King, nesta edição de que me sirvo (Erfahrungen mit dem I Ging, ed. Diedrichs Gelbe Reihe) é a de que da mais recôndita prega do tempo, do destino, surge a luz: luz que se condensa numa ideia, num sentimento, numa imagem poderosa, ora suave ora fulminante. Assim é o caminho, com as suas variações. Deus nem sempre espreitará do escuro de uma fenda, ao contrário do que escreve Borges, mas a condição humana sempre se revela.
A marca do Tao Te King também está presente no filosofar tranquilo que encontramos nos Haiku de David Rodrigues, embora eu tenha pressentido primeiro a ânsia a que o Yi King dá ( ou não dá) resposta.
Passemos aos seus livros, de edição cuidada, bom papel, letra agradável de ler - o objecto livro é importante- apela aos sentidos, da visão, do tacto, influenciando a relação que teremos com ele, antes e depois de o ter lido.
Publicado em 2007, ESTAÇÕES SENTIDAS, 111 HAIKU;
Publicado em 2008, RESPIRAR, 101 KAIKU 
Os títulos já indicam a fidelidade ao género literário, que se mantém nos poemas, na delicada concentração dos ritmos e das imagens.
As Estações Sentidas abrem com o Outono, a estação por excelência de toda a melancolia, fecham com o Verão que parece, numa apetecida sensualidade, permitir que o poeta se abra às emoções da paixão, no capítulo final, Sentidas, onde se faz do corpo a imagem condensada de um cosmos estelar:
103
O corpo
haiku feito de universo
e sentimento
Adiante noutro poema, e tal  como em Pessoa, ou em Caeiro (sua variante de desejada inocência), é na ignorância que o mundo se revela, a iluminação se dá. A ignorância, que se perde com a noção da consciência de que se é (e de que ser é uma realidade implacável), é glosada neste haiku 109:
O lago não sabe
até que chegue o vento
quantas ondas tem.
Meditando, lendo e relendo, como os haiku nos pedem, somos levados a concluir que todo o destino, ( o tempo) é impenetrável e que talvez seja melhor que assim permaneça, para que não se destrua a ilusão de alguma felicidade. Essa é a ilusão com o autor fecha o livro, no haiku 111:
Hoje ainda não há
toda a felicidade.
Só amanhã
Fecha-se a obra, abrindo-se a uma esperança que o futuro dirá se não foi vã.
Em 2007, a revista japonesa Ginyu escolheu como um dos sessenta  melhores haiku desse ano este poema, belíssimo pelo que tem de nosso (além do caminhar...):
Pedras das calçadas
como estilhaços de sonhos
deixados para trás.
 David Rodrigues tem uma paleta variada, que inclui todos os elementos da natureza que lhe prenderam, a dado momento, o olhar: como na alquimia, encontramos a terra, a água (lago, mar) o fogo ( que o sol ou a luz figuram ) o ar ( o céu, o vento ); e encontramos ainda,  na abundância da terra, as árvores, os arbustos, a flôr, o fruto, oferendas da mãe antiga, do corpo universal. Mais interessante ainda, o bestiário simbólico, de que ambos os livros dão testemunho e por onde passa quase toda a escala animal, do paciente caracol à pequena joaninha, da inocente borboleta ao canário ou ao melro,  às gaivotas ou ao falcão, sem esquecer o elefante, não menos significativo, na sua grandeza, do que o minúsculo pirilampo, cuja luz é afinal um marco do caminho:
Ver os pirilampos
como sabendo o caminho
 a seguir na noite. 
 (n.77,Estações Sentidas)
Se estivessemos a fazer uma Renga ( outro género, em que vários poetas dialogam por via dos poemas)  diria, tentando acrescentar sentido:
Relâmpagos de noite:
múltiplos são os caminhos. 
Mas, continuando com David: os seus haiku são pontos de emanação de um sentido que já contêm, imanente, como no ponto inicial o universo já se continha no todo que veio a ser. A fracção que é o poema, ou melhor, a fractura, situa-se precisamente entre a potência e o acto, movimento que a leitura repetida, mais até do que a escrita, permitem adivinhar. Há um momento de iluminação, que não tem de ser como a de Angelus Silesius, mística e comovente de ingénua entrega; a fulguração quase ou mesmo só panteísta, da contemplação da natureza e da centralidade do olhar do homem nela, faz igualmente parte da iluminação que pela obra nos é dada.
Coloco estes poemas de David entre dois poemas dos meus poetas favoritos: Sophia de Mello Breyner, que me acompanha desde a juventude, e Paul Celan, já na maturidade a que fui chegando:
Coral
Ia e vinha.
E a cada coisa perguntava
que nome tinha.
( Sophia )

Entrada de Violoncelos
...
tudo é menos do que
é,
tudo é mais.
  ( Celan )