Saturday, January 23, 2010

A Música em Portugal no século XX

Estamos perante uma obra monumental:
Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX (A-C) sob a direcção de Salwa Castelo-Branco, Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou um Instituto de Etnomusicologia que agora se dá melhor a conhecer através do lançamento do primeiro volume de uma série de quatro que se tornarão referência de interesse nacional e mundial para os investigadores da Etnomusicologia.
Basta procurar na letra A as entradas dos arquivos consultados para se ficar com uma ideia do que foi por um lado a dificuldade e por outro a exigência de uma informação tão completa e fundamentada quanto possível, num país como o nosso, que não inventaria, não cataloga, pouco preserva das suas memórias - neste caso da música- como de tantos outros de que se poderia falar.
O projecto durou mais de uma década a ser pensado, discutido, dividido por especialistas segundo as várias áreas, para que nada ficasse de fora: nem a tradição popular, nem a erudita, nem outras como as do fado, das etnias lusófonas ou o jazz que em Portugal se praticava; é ambicioso e abrangente, pois nele encontramos as entradas relativas aos locais, aos grupos, aos compositores, aos executantes - com abundância de fontes e documentação de todo o género.
Valeu a pena o tempo, o esforço, toda a dedicação de autores e colaboradores desta aposta mais do que bem sucedida e espero que muito bem acolhida pelos estudiosos e público em geral do Círculo de Leitores/Temas e Debates.
Não posso deixar de dizer mais alguma coisa a respeito de Salwa Castelo-Branco, a brilhante académica egípcia de que falou Rui Vieira Nery na apresentação que decorreu no Teatro Nacional de São Carlos: somos um país de lendas de mouras encantadas que ora seduzem ora se deixam seduzir; neste caso Salwa, que nos Estados Unidos singrava já num percurso universitário pioneiro, deixou-se seduzir e veio para Portugal, e para a Universidade Nova, dedicando-lhe o seu saber, o seu trabalho, a sua energia criadora que contaminou os que a rodeavam e são hoje seus colegas e discípulos. Fez escola, como fazem os Mestres.
Para Salwa uma palavra de gratidão e de carinho.
E para o país a sugestão: que o Prémio Pessoa de 2010 seja atribuído a esta académica brilhante e generosa.

Monday, January 18, 2010

Caramulo






Calculo que os amigos literatos conheçam, ou de ler ou pelo menos de ouvir falar, a Montanha Mágica de Thomas Mann, obra-prima do século XX, narrando a vida de Hans Castorp que por razões que agora não vou descrever decide ir ficando, como que para sempre, na montanha de Davos onde fora visitar um parente.
Mas talvez não conheçam o Caramulo, mais serra do que montanha, servindo contudo o mesmo fim, de sanatório pioneiro em Portugal no tratamento da tuberculose, o mal do século. Ficamos a dever a António José de Barros Veloso (cujo interesse pela História da Ciência e das Ideias Científicas tem sido expresso em variados estudos, seminários e conferências) a recuperação da memória e da história do Caramulo numa bela edição que prima pela qualidade gráfica, elegância e concisão de escrita tanto quanto pela organização dos materiais investigados.
O subtítulo, Ascensão e Queda de uma Estância de Tuberculosos, de imediato nos remete para essa leitura já citada de Thomas Mann, cuja montanha foi real, antes de ser literária.
Quanto ao nosso Caramulo é Barros Veloso quem nos conduzirá pelos seus caminhos.
Descreve em primeiro lugar o espaço:
"Aquela que é hoje conhecida por serra do Caramulo foi chamada em tempos serra de Alcoba. A palavra, que deriva do árabe, significa cúpula ou zimbório e poderá estar relacionada com o aspecto de alguns dos monumentais acidentes graníticos presentes na região". Para além da paisagem, refira-se ainda, de sedutora e misteriosa grandeza, a Anta milenar fotografada.
Depois traça a biografia do fundador, Jerónimo Lacerda: nascido em 1889, em Coimbra, aí viria a formar-se em medicina "com a classificação final de 19 valores" (em 1915).
Segue-se, na organização do volume, a descrição das infra-estruturas do sanatório, e da sua arquitectura, que já ficava a dever ao movimento modernista, nascido na Europa posterior à Grande Guerra, a noção de que os espaços deviam ser amplos e arejados, bem expostos ao sol, criando condições para o tratamento da tuberculose e doenças como o raquitismo:
É em consequência disso que vão surgir os vários edifícios "de estrutura marcada pelas linhas rectas, com telhados em forma de terraço, varandas largas e galerias".
Refere-se ainda o aparecimento da marca do estilo Art Déco, divulgado por uma nova geração de arquitectos que fizeram do Caramulo uma estância especialmente elegante: é dado o exemplo da Capela de Nossa Senhora da Esperança e de vários chalés erguidos na encosta da serra, na zona conhecida "por Fonte dos Amores, onde viviam as famílias dos doentes e de quase todos os colaboradores - médicos, farmacêuticos e gerentes dos sanatórios. Tampouco faltou naquela altura o cunho de vincado nacionalismo trazido por Raul Lino, a "casa Portuguesa", tão ao gosto do Estado Novo e das élites "em ascensão" como nota o autor.
Interessante é igualmente ver como se organizavam os horários dos pacientes, com regulares exposições ao ar livre, de manhã e à tarde. Barros Veloso transporta-nos a esse tempo, graças à sua escrita viva, de cunho pormenorizado e realista.
Continuando com a organização do volume, chegamos então aos aspectos assistenciais e científicos, que vão desde os anos 1920-1938 (a fase de arranque) passando pelo período áureo (1938-1952) para chegar ao fim anunciado (1952-1978). Estes são capítulo que interessarão muito em particular os cientistas e investigadores da medicina em Portugal. Temos uma reprodução de um aparelho de pneumotórax intitulado "caramulo", por ter sido invenção de um dos colaboradores do sanatório, que pertencia ao seu corpo clínico, Martins Queirós.
Claro, mais tarde, com a natural evolução do saber e com a descoberta da estreptomicina, todos estes processos se tornaram obsoletos.
Barros Veloso descreve ainda, com grande detalhe e abundância de documentação, as ligações políticas.
Veremos Oliveira Salazar, que foi amigo de sempre do fundador Jerónimo Lacerda, em ameno convívio com ele e António Ferro, num passeio pela serra - sendo esta uma das muitas fotografias que se incluem no livro.
O interesse histórico, científico, político, deste volume a que Barros Veloso dedicou o melhor do seu tempo, é sublinhado ainda pela qualidade da edição: está de parabéns a By the Book!
Quanto a nós, amigos leitores, talvez devamos visitar ou revisitar o Caramulo, a beleza da paisagem está lá, e está hoje em dia o Hotel e um Museu com obras escolhidas, onde nem falta um Picasso!

malevithc


Podemos seguir o ano com mais um número da Revista CRIATURA cujos editores escolhem para antologiar poetas e poemas variados, nos temas e julgo que nas idades.Há um lugar para os jovens, com os seus primeiros versos ( o Diogo Vaz Pinto que me corrija se estou enganada) e para autores já com obra feita. Bom espaço, boas escolhas - esta é uma qualidade rara que me faz ler a revista com interesse e cuidado.
Claro, como todo o leitor, não sou inocente na leitura, tenho preferências que me fazem voltar a alguns autores que vou acompanhando e conhecendo melhor.
Outros vou descobrindo.
Desta vez, e fazendo sempre jus às vozes femininas, escolho um pequeno poema de Ana Salomé, uma espécie de diário de intenções que me recordam o conselho de Rilke nas Cartas a um Jovem Poeta: se está a começar não escreva poemas de amor...esse amor que julgamos único na realidade torna-se banal pois o amor é de sempre, é de todos, e de início vivido de forma igual. Ora a grande poesia é feita da diferença e não do mesmo que possamos julgar, por ingenuidade, diferente e inovador. Há que ler muito, ler tudo, até chegar à desejada diferença.
DIÁRIO
A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.
(Ana Salomé, p.13)

Este é um Manifesto que bem podia comparar-se ao de Álvaro de Campos, também ele cultor de uma prática poética que se quis directa e quotidiana, sem resquícios de alguma evocação mais sentimental, ele que disse na altura que todas as cartas de amor eram ridículas...
É muito interessante descobrir nestas novas vozes poéticas uma herança que ali permanece viva, ainda que não explícita, e vai conduzindo o fio da experiência - que hoje em dia é narrada sem qualquer ocultação ou pseudo- timidez.
Tudo mudou na vida, nas opções mais sinceras ou mais de ocasião, cigarros e bebidas de mistura com sexo ora insípido ora mais feliz (passa por aí o Sexo e a Cidade da série conhecida) - tudo atravessa a linguagem poética como atravessa os chats, o face-book, o you tube e é essa trivialidade mesma que nos traz a mudança própria do século, e de que esta nossa poesia se faz eco. Forma, deforma, informa, num modelo que transforma estas vozes em mais do que poesia, documento social.
Poesia documental pois, viva e vivida, citadina, juvenil e jovial, também por vezes um pouco melancólica, como se os poetas soubessem de antemão que alguma vez os poemas terão fim.
Disse citadina: e também muito lisboeta, da Lisboa da moda, dos sítios da noite preferida, como por ex. vemos em David Teles Pereira, de que cito um excerto:
LUX/FRÁGIL
...
Há, claro, esconderijos perfeitos:Cais da Pedra
a Santa Apolónia, Armazém A, Sala 2 com
o rugoso paladar a fumo excessivamente caro.
....De novo o poeta reflecte sobre a necessidade
de imprimir no som o relevo de uma certa
distorção, em sintonia com as músicas
que constantemente ouve. É disso que se trata
no fundo, do poema ser como nenhuma outra música
e mesmo assim nunca ser silencioso.
...
O coração- simplifiquemos com simbologia
a questão- deixou de ser invisível, deixou
de ter o que dizer.

O poeta volta a olhar para a pista,
Já nem sequer sente vontade de escrever.
Só a uma centena de corpos a dançar a mesma
música se assemelha o poema.

Qualquer palavra agora seria escusada.
( D.Teles Pereira, pp.19-20)


Assim nos confrontamos com uma prosa poética, descritiva, (como a poderíamos ler no Livro do Desassossego, com a Rua dos Douradores de Pessoa, o mundo que o poeta vê à sua volta de um modo desprendido, de coração esvaziado ele também).
Neste poema observou-se primeiro uma rapariga que dança, e se torna cada vez menos interessante à medida que o tempo (o poema) corre: porque para o poeta a pulsão reside no poema e é mesmo assim que deve ser. O corpo é o corpo da escrita, a rapariga na noite do LUX é meramente um transitório foco de (des?)inspiração.
Quanto aos espaços, a música ouvida por todos com a tal centena de corpos a dançar - é mais uma manifestação do viver em comum ( no espaço do colectivo) uma vida que se torna talvez difícil de viver sozinho.
Sinal dos tempos.
Mas é bom que se saiba, com Rilke, e mesmo com Pessoa, que a flôr do poema só abre na solidão.

José Carlos Barros traz neste número as várias evocações dos seus escritores preferidos: Florbela Espanca, Bernardo Soares; e Luís Filipe Parrado fala-nos de Gauguin, no intervalo de falar de outras coisas, mais próximas e mais íntimas, como no poema da Natureza Morta Com Maçãs:

É triste
o espectáculo do amor
apodrecendo aos poucos
na fruteira
as maçãs que te trouxe
têm agora a pele seca e enrugada.
(p.106)

Poderia continuar por mais tempo, mas é o espaço que me limita no blog.
O importante é ler e dar a ler; está feito. E só mais uma chamada de atenção, last but not least: esta é uma poesia culta, de poetas que vão aos museus, aos concertos, compram livros para ler ...para além das noites e dos dias de que nos falam.
E agora vou, como diria o L.F.Parrado, à minha vida: levanto-me/ para tratar dos pratos e talheres (no meu caso dos netos)/O blog, desculpem, tem que ficar por aqui.



Saturday, January 09, 2010

Criatura 2009

Continuando com a revista, sugiro agora a leitura de um haiku de José Carlos Barros:

O Vento
O vento dos poemas
não faz mexer
uma folha.


Outro poema, de um pseudo-neorealismo de humor subtil, de Luis Filipe Parrado:

Teoria da Narrativa Familiar
Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da côr da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.

Para além do "discurso" o interessante no poema é o fecho que nos deixa em suspenso: a aprendizagem da mentira que mudou tudo.
Não sabemos e não ficaremos a saber o que que foi que mudou: a ideologia que supostamente formara o poeta? O seu olhar sobre o mundo perturbado pelos caos de uma outra presença ( a irmã que nascera), ou muito simplesmente a adolescência difícil (todas as adolescências são difícieis) e em que a mentira é uma forma de preservação do sossego interior?
Não sabemos, e pouco importa, o mistério é da natureza do poema e é a razão do poeta.

Outro poema, do mesmo autor:
TUDO O QUE O MEU PAI DISSE QUANDO AOS QUINZE ANOS DECLAREI EM FAMÍLIA QUE IRIA COMEÇAR A ESCREVER POESIA

"Antes
de te sentares
à mesa
lava bem essas mãos".

Criatura 2008


Já algum tempo que desejava apresentar aos meus leitores, sobretudo aos leitores de poesia, esta revista, CRIATURA, organizada pelo Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, com o apoio da Associação Académica.
Por várias razões:
o mérito da iniciativa, num momento em que todos se queixam de que é difícil publicar poesia, ninguém compra livros de poesia, ninguém lê, etc.
e pelo que o esforço revela de um entusiasmo não perdido, o mesmo que outrora, na mesma Associação Académica, nos anos 60, permitiu que se criasse um grupo de teatro estudantil que levava à cena peças de um experimentalismo inovador, desafiador também por vezes e nem sempre bem acolhido pela censura; faziam-se ensaios diferentes: um aligeirado para a censura, outro que já seria o ensaio geral do espectáculo concebido.
Revejo-me no espírito desta revista: inovar e criar pela escrita dos poemas, com sua linguagem própria, muito reflexo da experiência que é a dos jovens de hoje, como outrora foi a nossa;e inovar ainda pelo modelo que escolhem, de uma revista independente, de boa apresentação gráfica, bom papel, letra agradável de ler; a estas qualidades acrescenta-se ainda a pluralidade dos autores que colaboram, num conjunto de vozes bem diversas, nacionais e estrangeiras, e todas interessantes seja pelos temas seja pelos estilos.
Alguns autores colocam em epígrafe os seus preferidos:Walt Whitman, Luiz Pacheco, Nuno Júdice, outros.
A escrita feminina afirma-se coloquialmente sem recusar nem obscurecer as palavras ou imagens necessárias para exprimir alguma situação: do corpo, do eu, do outro, da cidade ou do mundo; é uma poesia liberta e viajada, uma poesia atravessada de cultura - outras culturas, outros mundos e muitas outras leituras.
Leia-se Elena Medel:

Habitat

O tecto do meu quarto é Hollywood.
Nunca ninguém
me poderá ver chorar no seu clítoris de néon.
Aconchegam-me pirilampos que se derramam em lugares distantes,
pontos de interrogação que viajam de graça,
enaltecidos por acrobatas que gozam comigo
e com as suas pegadas fulminam a Via Láctea
e o seu suor e o vestígio são a silhueta no chão
de Salomé a pontapear a cabeça do pregador:
piedade, deus frio, para a minha mesinha de cabeceira.

Filhos de Haley a destruir o meu refúgio,
Sunset Boulevard na noite escura do meu tecto.

( a autora é espanhola, esta é uma tradução de David Teles Pereira)

Veja-se como no entresonho de um quarto às escuras a viagem corre de um presente hollywoodesco sexualizado a um passado mítico como o de Salomé, figura que a história ampliou devido à decapitação de João Baptista exigida a Herodes.
Outro dos poetas antologiados oferece, com grande originalidade uma revisitação do pintor Munch (p. 113-114).
O que reforça o que eu já disse atrás sobre este fenómeno de uma nova poesia contemporânea, culta, de expressão coloquial ou directa, viajada, e que a revista Criatura nos dá a conhecer.
Parabéns e que continuem em 2010.




Friday, January 08, 2010

A Cidade


A Cidade de Aristófanes revisitada por Luis Miguel Cintra, no Teatro São Luiz.
A não perder.