Tuesday, February 23, 2010

José da Cruz Santos


Quem ama a poesia e a edição não deixará nunca de ler, de escolher, de editar...
É assim que José da Cruz Santos, Mestre da edição em Portugal, desde os anos cinquenta, quando tudo era mais difícil e parecia mais fácil - apresenta agora a sua nova colecção de poesia, JCS na Modo de Ler.
Este primeiro volume não podia ser mais belo, nem mais significativo: é feito de rosas, as rosas dos poetas, a grande roda -rosa do mundo.
Por ordem alfabética, de Alfredo Margarido a Rainer Maria Rilke, poderemos ir lendo 56 poemas, da muita poesia portuguesa e não só que o autor antologiou com o maior cuidado.
Na tradução de José Augusto Mourão lemos Angelus Silesius, o místico alemão do século XVII:
A rosa é sem porquê; floresce, porque floresce,
Não cuida de si própria, não pergunta se a vemos.

E na tradução de Paulo Quintela deixo a rosa de Rilke:
rosa, ó contradição pura, volúpia
de ser o sono de ninguém sob tantas
pálpebras.

A imagem da rosa alimenta os poetas, a imagem do livro alimenta este editor incansável.
Desejo-lhe daqui todo o sucesso.

Sunday, February 21, 2010

Miguel Yeco


Miguel Yeco, pessoano pintor, espalhou pela cidade de Lisboa, em cantos e paredes, a imagem que era o seu selo, a sua assinatura, a figurinha solitária de Fernando Pessoa.
Na imensa solidão adivinhava-se um mundo, um universo, constelações de imagens e ideias tomando formas ora excessivas ora subtis, de tal modo subtis que só um grande amor, como o de Miguel por Fernando Pessoa, poderia evocar.

Hein Semke

Arrumando preciosidades encontro este desenho de Hein Semke, representando Teresa Balté, sua mulher, pintora e poeta.
Data do início dos anos 90 - uma época em que não acontecia, como agora, que a poesia, no sentido mais lato do termo, fosse regularmente trucidada.
Porque o tempo faria valer o melhor da criação artística, os criadores sabiam, ainda que demorasse, que a hora de novos olhares acabaria por chegar e com ela não o pagamento - nunca de dinheiro se tratava - mas o prazer do reconhecimento, da contemplação inspirada ou da leitura feliz.

Monday, February 15, 2010

Rimbaud-Pessoa


A releitura de um poema de Rimbaud, escrito em 1870, Le Dormeur du Val, trouxe-me de novo à memória O Menino de sua Mãe, de Fernando Pessoa, publicado pela primeira vez na revista Contemporânea, de 1926, e inspirado segundo ele conta numa litografia vista numa pensão onde fora jantar com com um amigo (in M. Aliete Galhoz, notas à Obra Poética de Fernando Pessoa,Rio de Janeiro, 1972).
Sabemos da curiosidade e da cultura imensa de Fernando Pessoa, e da sua capacidade de traduzir ou melhor, dialogar, com obras de outros autores de cuja sensibilidade se sentia mais próximo. E na verdade o conhecimento dos horrores da guerra de 1914-1918 era geral entre nós, avivando sentimentos como os que transparecem no poema. O mesmo acontece com o poema, de vários anos anterior, de Rimbaud. Os críticos entendem que no caso deste jovem génio não será tanto esse sentimento que prevalece, mas antes o de se inspirar num motivo literário que já tinha sido trabalhado, entre outros por Victor Hugo, Souvenir de la nuit des quatre, e em Quinet, L'histoire de mes idées, numa página que pode ter inspirado Rimbaud: o jovem Quinet descreve como viu, aos quinze anos de idade, num bosque, o cadáver de um soldado com uma ferida no flanco, a escorrer sangue, boca aberta e os braços em cruz. Imagem forte, que não pode ter deixado de impressionar quem a leu (in notas à edição da Obra Completa da Pléiade).
Que os motivos literários se contaminam uns aos outros, ao longo dos tempos, é sabido.
Seria interessante ( e será que já foi feito?) identificar a tal litografia que foi vista por Pessoa, e em que restaurante, dos vários que frequentou (mas nem seriam muitos). Essa litografia talvez fosse a representação do poema de Rimbaud.
É certo que podemos, entre os clássicos, encontrar vários motivos semelhantes a este, de comoção perante a morte aparentemente sem sentido de um jovem. Mas o poema encerra ainda algo mais: a identificação da morte com o sono. O soldado morto é um dormeur, é um homem que adormeceu no vale.
A morte como sono eterno, como repouso eterno, livre do sofrimento da vida.
Procurei uma tradução em português e encontro num poeta brasileiro (é preciso ser poeta para traduzir bem...) a belíssima tradução de autoria de Ivo Barroso, e aproveito para recomendar a leitura do seu blogue e a da obra de tradução, em edição bilingue, de 1995.
Desgosto grande é que em Portugal nada ou muito pouco se saiba da grande erudição brasileira, que envergonha a nossa cada vez maior iliteracia. O Brasil dá cartas. Por mim tudo bem, não preciso nem nunca precisarei de "acordos ortográficos" de espécie nenhuma, para acompanhar a produção brasileira que conheço desde que li pela primeira vez Clarisse Lispector, Jorge Amado e muitos dos criadores dos meus anos sessenta: Vinicius foi um deles, visitou Lisboa várias vezes, mas houve muitos mais. Para mim tudo continua. Mas lamento pelo meu país, envelhecendo mal, há anos que deixou de haver uma Livraria Brasileira como tinha havido e onde íamos regularmente aos sábados ver o que tinha chegado.
Mas voltando aos poemas:
Em Rimbaud o soneto começa com a descrição realista de um vale verdejante, iluminado pelo sol, em suma, uma paisagem amena e suave; na segunda quadra já se descreve então um jovem soldado, de boca aberta, cabeça nua repousando na erva fresca: dorme, estendido sob as nuvens, pálido na sua cama verde onde a chuva cai.
Feita esta descrição, quase evocando no início uma natureza-mãe que embale e aqueça o jovem adormecido, o poeta revela então aos poucos o que ali acontece: o jovem dorme, sorri como uma criança doente sorriria no meio da sua sesta; e chega então o apelo " Nature, berce-le chaudement, il a froid" ( Natureza, embala-o calorosamente, ele tem frio).
Apercebemo-nos, com subtileza delicada, desse grande mistério que é a morte, sono eterno em que a Grande-Mãe nos recebe e embala.
No último terceto a imagem cruel:
"Os perfumes não fazem estremecer suas narinas;
Ele dorme ao sol, a mão posta no peito
Tranquilo. Dois buracos vermelhos no seu lado direito".
Não se diz nunca a palavra morte , evoca-se o vale, o brilho do sol em contraste com o vermelho dos buracos da bala, sem que se diga sangue, como tampouco se disse morte - pois não fazia falta. A concisão, a economia do verso torna-o mais secreto e mais belo, mais intenso, muito mais comovente.
O adormecido do vale, jovem soldado varrido pelo acaso da guerra, não ouve já o canto da ribeira, não vê o céu sob o qual repousa, não sente o cheiro dos gladíolos em que está deitado.
Esta referência aos sentidos carrega de melancólica saudade do essencial da vida, num jovem de dezasseis anos como era Rimbaud à data, o seu poema.
Bem diferente será o caso de Pessoa.
Embora recuperando algumas das imagens próprias do motivo central do jovem soldado morto na guerra, longe dos seus ( da mãe, da criada velha), trespassado por duas balas, a descrição, realista e desenvolvida numa série de quadras ( o soneto obrigaria a muito mais contenção, nem tudo é mau nas formas rígidas! ) escolhe antes o contraste entre os objectos que perdurarão, como a cigarreira dada pela mãe, o lenço dado pela criada - pormenores que, escolhidos para comover mais, antes nos distraem do pormenor essencial que é morrer jovem numa guerra sem sentido.
Ao contrário de Rimbaud, em cujo imaginário, panteísta, sensual, encontramos o lamento e também o reconhecimento do arbitrário mas inevitável sacrifício ritual da vida à morte, como se dum Attis se tratasse e não dum jovem soldado, em Pessoa o que encontramos, na escolha (ainda que emocionada) deste mesmo motivo é a identificação com o seu desgosto de viver, na permanente saudade da infância quando tinha mãe, criada velha, contos de embalar, brinquedos (que lhe partiram, como dirá Álvaro de Campos).
Pessoa, num extremo exercício de consciência de si, depressa nos remete para uma saudade que já pouco tem a ver com o motivo-base do poema, passando o jovem soldado a uma quase figuração do que o poeta vê de si mesmo, um "menino de sua mãe" que há muito deixou de o ser. Não vê, nem sente, como Rimbaud, o desgosto de uma vida que se perde em mais um sacrifício, vê antes na vida desperdiçada do jovem soldado o que entende ser o desperdício da sua própria vida.
Relembrando a biografia, deixa de ser o tal menino quando a mãe, viúva, casa pela segunda vez e constitui nova família. Nunca mais o poeta deixará de glosar o motivo da infância perdida, nem como ortónimo nem como heterónimo, em nenhum dos múltiplos casos.

Friday, February 12, 2010

Revista de Arte


Brilho no Escuro:
Há dias assim, dias felizes em que o acaso de uma amizade nos permite o reencontro com artistas que acompanhamos outrora, apreciando a sua inspiração, a independência e originalidade das suas vozes ( obras ) que o tempo, o eterno corruptor, não corrompeu.
Recebo esta revista ( e lamento não ter visto o n.1 e ter vindo a saber que talvez não haja n.3 ) e descubro a mão de Isabel de Sá na ilustração, e poemas seus que me remetem para as edições eETC. onde desde sempre os marginais, os alheios, os invisíveis dos discursos da moda podiam encontrar um espaço próprio, livre, sem imposições de qualquer espécie; ali se convivia com alguns dos grandes textos que a editora dava a conhecer em traduções pioneiras; ali todos se sentiam bem.
Descubro ainda o Paulo da Costa Domingos, com outro poema, que leio como quem não vê um amigo de longa data, nunca esquecido.
E finalmente uma voz que é jovem, no meio desses mestres da poesia de sempre, João Borges, que espero poder acompanhar por algum tempo, o tempo que me for concedido.
Esta é uma revista de arte, em que poesia e ilustração mutuamente se iluminam, daí o brilho no escuro, a luz no coração vibrante das palavras.
E é um desafio: o da interrogação, como a da Alice no País das Maravilhas, que se procura a si mesma para entender quem é e o que é o mundo à sua volta.
Uma interrogação a que só o artista com a sua arte pode responder, com um Eu Sou - "eu sou", como aquele que exclama, do fundo do universo "eu sou aquele que é ", eu sou o Ser-em-si, o Absoluto, a Essência, o eterno e indestrutível Fundamento da existência que, no seu poema, Isabel de Sá define como Princípio da Realidade.
Uma realidade insubmissa.

Se a arte
não for insubmissa
se não permanecer
desobediente
e não escapar ao controlo
é o quê ?

Se a arte
não for insurrecta
se não permanecer
pedra viva escaldante
é o quê ?
a arte se não disser Eu Sou ?

Dizer eu sou, significando a essência do que se é, neste caso ( como noutros) artesão da dissidência, é cada vez mais difícil nos dias que correm.
E decidir-se a editar uma revista de arte que será de poucos, devendo ser de muitos, é nestes dias que correm outro acto de insubmissão.
Mas é nesta insubmissão que se respira, e é dado a ver um coração que bate.