Saturday, September 04, 2010

Anthero Areia e Água


De Armando Silva Carvalho um livro inspirado, de poesia ao mesmo tempo de reflexão severa e grave melancolia.
Com uma capa de Mário Cesariny, bela de tão sóbria, mais uma vez obriga a que se felicite a editora Assírio e Alvim pelo seu requinte e bom gosto.
Quanto ao titulo, que logo "agarra" e comove, resulta dessa capacidade que alguns poetas têm - como é o caso de Armando - de encontrar, com facilidade aparente, um título que seduz e ao mesmo tempo dá uma indicação subtil de orientação de leitura.
Sabemos que se trata de Anthero de Quental, poeta tão esquecido dos nossos manuais escolares e que foi um dos mestres de Pessoa. E a escolha das imagens da areia e da água são a síntese subtil de um percurso, o de Anthero, mas também o deste poeta que o está a ler e enquanto lê entra em diálogo com ele, com o seu pensamento filosófico e sua inspiração poética: um pensamento sólido e severo na relação com o mundo, uma inspiração frágil e que foge entre os dedos, como a areia e a água. Obra que se desfaz, enquanto a vida também ela de areia e água acompanha essa obra e tristemente se desfaz.
Armando Silva Carvalho é um poeta de grande cultura e grande, para não dizer notável, domínio dos géneros poéticos. Do verso livre ao soneto é exímio no realismo dialogante, na reflexão metafísica, na pura expressão dos sentimentos.
Armando, ao ler Anthero, tornou-o seu e é de ambos a melancolia grave, o distanciamento de uma vida (ou sociedade) em que já não se reconhecem e mesmo assim procuram entender.
Do poema quase epígrafe, ou melhor dedicatória evocativa de Anthero, cito apenas o fim (p.9):
Repito:
Entre a beleza funérea
E a pouca areia e água em que vejo afundar-se
A minha vida
Corre a extinta luz dum mundo
Já sem mundos.
E nessa cinza, como um desafio,
Consigo decifrar as pègadas de Anthero
A caminho do supremo
Nada.

Os poetas que amamos contaminam o nosso pensamento, as nossas emoções, a nossa escrita poética.
Armando Silva Carvalho, ao reler a obra de Anthero (As Cartas) caminhou com ele pelos espaços que a sua obra -toda feita de vida- ia deixando em aberto.
É o que fazem os grandes poetas: abrem espaços a outros poetas, como por vezes também a um leitor comum. Por isso devem ser lidos, estudados, dados a conhecer.
No poema, um dos últimos do livro, Destas Ilhas No Alto (p.99-100) exprime o poeta o que Robert Musil definiu como as duas experiências de maior provação da alma, o mar e a montanha:
É dos picos que olhamos.
Consciência do cimo destas ilhas e no alto
Dos altos nos trocamos.
Andamos por razões que as mãos
de deus, os pés dos condenados, as zonas mais
Absortas do mistério
Nos sabem entrever entre montanha e montanha
Sob um céu mental e derradeiro.
....
É do mais fundo dos fundos
Que abarcamos
Os arcanos da alma ocultos na belíssima cabeça
Do nosso monge em secreta ascese.
Patriota, fiel e socialista,
Doando o seu conselho, o seu pedaço de alma
A uma corte selecta
De homens do país, agrários, literatos.

Só nos faltou o meio,
Meio termo, meio mundo, mediana fala
No meio da natureza,
Planície do desejo nos lugares do corpo,
Uma voz mais usada, ousada,
Que se sabe perdida e segue a ciência do seu mal
Entre os terríveis fogos, entre abismos sonoros
Entre a carne que vive.

Deus permanece oculto, não se rompe o mistério que envolve a sua carne, a carne que vibra na manifestação da existência, nossa e dele. Pois se é em nós e só em nós que existe e toma consciência, ainda que dolorosa...nós somos, no universo imenso, a prova máxima, a voz que fala, ("entre abismos sonoros") mesmo quando se assusta e se cala.
Neste livro de Armando, o que acontece é a meditação em diálogo ora directa, ora mais íntima, metafísica e mística, do pensamento e da condição de Anthero, face a um universo que existe mas não responde.
Anthero desistiu, face ao mar, entre areia e água.
Ao Armando pedimos que não desista nunca.

(Retomo agora este post, em sua memória, no dia 1 de Junho de 2017, da sua despedida).