Sunday, March 13, 2011

Cristina Branco


A discografia de Cristina Branco, geralmente associada ao fado canção e à canção popular portuguesa, tem marcas muito próprias que a distinguem:
uma excepcional cultura literária e um bom gosto na escolha dos poemas que fazem da sua esfera de criação musical um caso raro que merece o destaque que lhe vou dar, neste espaço de literatura e arte.
Frequentemente traduzo Lied e Canção lírica francesa, para amigos, como o pianista Nuno Vieira de Almeida e, através da maravilhosa experiência que tal colaboração me permite, sei como é importante a base literária de que se parte para a composição musical e para voz do intérprete.
Ao contrário dos sucessos que em Portugal, ainda que com algum humor, se têm promovido, em que nada faz falta, nem texto, nem música, nem muito menos voz (!) todos estes elementos - texto, música, voz - são na verdade indispensáveis e com o tempo se verifica que são também a verdadeira base do sucesso continuado e merecido.
Frank Sinatra lembrava aos incautos do momento que fama imediata é algo que pode acontecer a todos , mas só acontece a alguns manterem-se no pico da sua fama durante anos seguidos. A razão era, como é hoje e será sempre, a qualidade musical, poética e de sensibilidade e inteligência (não apenas vocal) do intérprete.
Frank Sinatra outrora, Amália, no nosso caso, e agora, para mim, sem dúvida alguma Cristina Branco.
Já em Kronos, onde precisamente a reflexão musical que se propõe é sobre o tempo ( e recordo aos amantes de filosofia que o Ser e o Tempo estão intimamente ligados...) a marca da escolha poética definia o seu estilo, um estilo de grande qualidade literária como se pode ver pela lista dos escolhidos:
Manuel Alegre
Hélia Correia
Sérgio Godinho
Álvaro de Campos
Amélia Muge
José Mário Branco
Vasco Graça Moura, para só citar alguns.

De Portugal para o mundo, eis este novo disco, recentemente lançado em cd e dvd Não há só Tangos em Paris.
Da belíssima qualidade dos temas musicais e dos arranjos, da produção artística, executiva, da qualidade do som na captação de voz e instrumentos tão rara entre nós, mesmo com os melhores autores, não falarei, para deixar esse comentário aos entendidos.
Mas da qualidade dos poemas, e novamente do bom gosto das escolhas, terei mesmo de falar. E da sensibilidade da interpretação, para além do à vontade no domínio das línguas estrangeiras, neste caso o francês e o castelhano ( não digo espanhol, é o castelhano da Argentina).
Reencontro na voz de Cristina a mesma sensualidade envolvente de um Gardel no seu Tango, ou de Amália no seu Fado, por uma razão bem simples: um e outro têm a clara noção de cada palavra do que estão a dizer.
Não há atropelos na dicção perfeita de Cristina, em nenhuma das línguas. Até alguns dos nosso actores poderiam beneficiar com a audição deste disco.
A verdade e a experiência ensinam que articulamos melhor o que bem controlamos, a saber: o sentido e o peso de cada palavra no conjunto do poema (aprofundando a intenção do poeta), e a busca da melhor colocação na voz para um dizer mais perfeito.
Tudo isto é realizado com perfeição, repito mais uma vez, rara entre nós, no caso de Cristina Branco.
E como não me regozijar com a escolha dos poetas?
Eis a lista:Manuela de Freitas (ela mesma, que recordo como notável actriz, perfeita na dicção como perfeita neste belo poema)
Pedro da Silva Martins ( o seu poema dá o título ao disco)
Baudelaire ( o pai dos pais da Modernidade literária, para dizer só isto...)
Carlos Tê
Jacques Brel
Miguel Farias
Isolina Carrillo (para o célebre Dos Gardenias para ti...)
António Lobo Antunes
António Gedeão ( para mim sempre grande, desde a Pedra Filosofal), entre outros.

O pianista João Paulo Esteves da Silva não levará a mal o meu comentário de melómana e admiradora fiel da sua arte, ao confessar que, ouvindo a sua Invitation au Voyage, descobri uma nova interpretação (leitura) do poema de Baudelaire através do modo como ele musicalmente o leu e Cristina Branco o interpretou.
O tema tornou-se para mim mais do que moderno, post-moderno, na sua súbita alegria e quase desprendimento, (da melancolia e saudade de um Além desejado mas tão longínquo na sua promessa como o país de Mignon, no sul da Alma, onde limões floresciam). O Longe aqui evocado é o da Holanda (segundo é dito pelo próprio poeta) com os seus canais, e não a Itália de Goethe. Mas isso em nada altera a emoção que o poema nos causa.
L'Invitation au Voyage (1857)/O Convite à Viagem (versão livre)

Minha filha, minha irmã,
Pensa na doçura
De viver juntos bem longe!
Amar à vontade,
Amar e morrer
No país à tua imagem!
Os sóis molhados
Daqueles céus enevoados
São para mim o encanto
Misterioso
Da traição dos teus olhos
Brilhando através das lágrimas.

Lá longe, tudo é ordem e beleza,
Luxo, volúpia e calma .

Móveis brilhantes,
Polidos pelos anos,
A decorar o nosso quarto;
As mais raras flores
Misturando odores
Com um vago perfume de âmbar,
Os tectos ornados,
Os espelhos fundos,
O esplendôr oriental,
Tudo nos falaria
À nossa alma em segredo
Na suave língua natal.

Lá longe, tudo é ordem e beleza,
Luxo, volúpia e calma.

Repara naqueles canais
Como dormem as barcaças
Cujo humor é vagabundo;
É para satisfazer
O menor dos teus desejos
Que venha do fim do mundo.
- Poentes
Cobrem os campos,
Os canais, toda a cidade,
de ouro e flôr de jacinto;
O mundo adormece embalado
No calor daquela luz.

Lá longe tudo é ordem e beleza,
Luxo, volúpia e calma.

Claro, neste meu caso de traduzir um clássico tive de ser literal, sobretudo no refrão.
Perde-se a rima, mas não se perde a intenção do poeta.
Em condições normais, para dizer em voz alta, eu traduziria assim o refrão:
Lá longe tudo é harmonia de alma
Luxo, volúpia e calma.

Não deixem de ouvir o disco!













Wednesday, March 02, 2011

A Noite Abre Meus Olhos


De José Tolentino Mendonça a obra poética reunida, num livro que é ele mesmo um objecto poético precioso: pela dimensão, pelo design e ilustração da capa, a partir de um quadro de Lourdes Castro, um livro como um missal, exclamou Teresa Horta ao pegar nele. Cabe na mão, apetece levá-lo connosco e foi o que fizemos.
Comecei pelo princípio e lá encontro a influência maior que todos nós sofremos: Herberto Helder.
E fui continuando.
Acompanho a palavra discreta que fala das ruas da infância, das janelas por onde o mundo entra, enquanto as senhoras ( ainda foi assim no meu tempo, em casa da minha avó ) continuam bordando.
O que se bordava, naquele tempo? O próprio tempo: a espera, se as jovens ao redor ainda não tinham namorado; a melancolia ou o aborrecimento se a vida já as estivesse a consumir, a elas, a essas mulheres das casas com janelas, mas de cortinas quase sempre corridas (o sol estragava os móveis, mas havia pior: a vida estragava as vidas).
Nalguma poesia de Tolentino é manhã, sim, como ele diz,mas já é tarde.
Terá Deus faltado ao compromisso, ao desejado encontro?

Olhar sobre a cidade
...
anda atravessar os velhos pórticos
e depois fica
sem saber em que tempo
estamos
ou se teremos ainda
que morrer

anda, é manhã sim
mas já é tarde
e tu sabes

A interrogação, em Tolentino, bate no centro do poema, no fundo escuro onde a palavra tem origem.
Como Paul Celan, o poeta pede que lhe digam, para que ele possa dizer a si mesmo o que está mais oculto e lhe é mais inacessível na razão das coisas, do simples existir:

O olhar descoberto
Diz-me
....
se há um sentido oculto
no rodar das estações

Diz-me se
toda a imagem é engano
ou filha enjeitada
do fogo

Diz-me se é certo
que o tempo é um único olhar
prolongado nos dias

se a vida é o avesso da vida
e se há morte

A caminho do fim do livro, não me admiro de encontrar Lourdes Castro, a rainha da Sombra, tal como (no fulgôr oposto) encontrei Herberto Helder ao começar a leitura.Não por serem ambos ilhéus, ambos rochedos da Ilha da Madeira, cada qual com a sua história de fuga e reencontro; mas por ambos terem projectado, nos anos sessenta e setenta de um Portugal obscuro, a luz das suas obras, o ranger das portas que empurravam, ou o clamor dos gritos que abafavam.
Numa entrevista recente Lourdes dizia à realizadora do filme: tudo nasce da sombra, não é assim? Mostrava a raiz da planta que já estava a crescer.
E Era assim.
O mesmo com Tolentino, a noite abre os seus olhos, escolheu ele para título da sua poesia reunida.

Lourdes Castro, Rua da Olaria
....
A minha arte é uma espécie de pacto:
não distingo as áreas selvagens das cultivadas
e elas não distinguem a minha sombra
da minha luz


Se não fosse que ao tornar-se moda se tornou para mim cada vez mais difícil falar de alquimia, esta seria a conclusão melhor para o meu comentário, como parece ter sido a melhor conclusão para a obra de Tolentino: o pacto (eu diria o caminhar pelo obscuro) levou à imagem suprema da conjunção alquímica de opostos: luz e sombra, depois de percorrido o que há em nós de selvagem e de cultivado.
Poética de palavra discreta, de passos só aparentemente pequenos, de silêncios que se (nos) aprofundam, este não é um livro para qualquer um.
Só para quem ame a poesia no seu estado mais depurado e sublime. Sabemos, com Celan, que
tudo é menos, do
que é
tudo é mais.