Thursday, August 30, 2012

William Blake, Songs of Innocence and of Experience


O pedido de um amigo Editor, José da Cruz Santos, fez-me voltar a Blake e à sua poesia, misteriosa e actual pelo desafio que lança à nossa imaginação.
Nesta obra Blake pretende mostrar, como diz, " the two contrary states of the human soul" - os dois estados contrários da alma humana, através das líricas da pureza inocente, canções de grande beleza rítmica, e no seu oposto as líricas misteriosas, intensas, quase perversas na inesperada inversão, do que apelida de canções de Experiência.
A Experiência é a percepção do Mal, no Universo criado, como se a mão de Deus fosse de repente desviada do seu verdadeiro primordial caminho.
A mais célebre das canções de Experiência é a do Tigre - e foi esta que o meu amigo me pediu para traduzir.
O Tigre como figuração do Mal: um mal absoluto, inexplicável, ardendo nos olhos de um animal de grande porte e nobreza. Saído da mão de um Deus não menos perigoso, cuja "outra face" é essa mesmo que o Tigre representa. Deus é um deus dividido, pois se dividiu na criação. E dele fazem parte o Bem e o Mal.
Blake, teósofo, visionário, pertencendo ao grupo de leitores de Boehme, sabe, sente, que a treva se esconde no coração da luz, e que na alma humana, como já Goethe dissera no Fausto, coexistem duas almas: a luminosa e a obscura.
Das traduções que conheço em língua portuguesa, a mais inspirada é sem dúvida a de Augusto de Campos, notável poeta e tradutor brasileiro. Pode ser encontrada pelo google.
Mas fiz a minha, para a edição do conjunto que Cruz Santos publicará na colecção "Oiro do Dia".

William Blake (1757-1827)
O Tigre

Tigre, tigre, fogo ardendo
na escuridão da floresta,
que olhar eterno ou que mão
tão temível simetria desenhou?

Em que céus ou profundezas
arde o fogo dos teus olhos?
E ele, que asas deseja ter?
Que mão ao fogo se atreve?

Qual o ombro, qual a arte,
que o teu coração torceu?
Ao começar a bater,
mão terrível, pés de horror,

que martelo e que corrente?
O teu cérebro, em que forno?
Que bigorna e que tormento
te prenderam ao temor?

Quando as estrelas suas lanças depuseram,
e o céu com as suas lágrimas molharam,
sorriu Ele perante a obra?
Ele, que fez o Cordeiro, também a ti concebeu?

Tigre, tigre, fogo ardendo
na escuridão da floresta
que olhar eterno ou que mão
tão temível simetria em ti ousou?

(versão livre, 2012)

Wednesday, August 22, 2012

Chagall

Chagall, O Pintor e a Lua, aguarela de 1917.
O seu imaginário solto, antecipando o dos futuros surrealistas, com quem conviveu em Paris, permite que se entendam símbolos e arquétipos fundadores: veja-se como neste quadro é de um sólido corpo de terra-mãe que emana a forma do pintor flutuante no espaço azul da noite; e é a terra-mãe ou é a lua, que afinal o ampara, seios grandes redondos como de lua cheia ou seu reflexo?
Outro nome é Cybele: lua, sim, mas deusa primordial ao mesmo tempo, com seus rituais assassinos, que no quadro de Chagall não transparecem..
Ele na lua bebe a inspiração que o liberta dos pormenores das casas da cidade, bem longe, lá em baixo, reduzidas a casinhas de brinquedo da sua infância, nem sequer falta o camponês com a sua cabra (animal bem terrestre): da terra à lua, do sono (que a cortina de algodão, no lado direito do quadro, protege) ao sonho, e no sonho a recuperação de símbolos primordiais. A lua é um deles,  figuração da Sombra da alma, mas em Chagall extremamente suavizada.
Desta noite da alma nasce a inspiração.
Também aqui, em Shubert...

Saturday, August 18, 2012

A RUA

Na rua larga passeiam as mulheres
que arrastam pelo chão
o último vison e a última visão

casas fantasmas de tectos ideais
emergem da noite em nevoeiro
vermelhas azuis verdes amarelas
recém pintadas fugidas dum tinteiro

duas crianças brincam no passeio
duas crianças sós e sem asseio
mas com passeio largo
reservado para elas

ratos e gatos
jogam ao polícia e ao ladrão
e um cão de guarda fuma
o cachimbo da paz
que segura na mão

há sinfonias demasiado completas
a dançar no ar
(nuar: verbo irregular;
eu nuo, tu nuas, ele nua, nudismo geral)
e por toda a parte cavalgam
os cavalos de Chagall
transpondo o arco-íris de todo o pensamento
que é realmente mento
porque só pensa é fácil
o difícil é o verdadeiro e completo
pensa-mento
(mente? pergunta alguém
não mente, mento)

no restaurante há omelettes em chamas
servidas por bombeiros voluntários
e as banheiras estão cheias
de afogados mentais

a lápide de inscrição no cemitério
 diz apenas
a vida não deu pra mais!

(in Opus 1, ed. Ática, 1961)




Thursday, August 16, 2012

O ELÉCTRICO

Para a Rita Roquette de Vasconcelos ( que vê por trás das Máscaras...)

O Eléctrico

Era o eléctrico amarelo
cheio de homens e mulheres
recortados à faca dum papel
com caras de madeira
máscaras de olhos frios
pintados a gouache sem pincel

Era o eléctrico amarelo da noite
por fora tinha côr
por dentro estava cheio de rostos
macilentos
olhos de sono
revistas de amor

Era o eléctrico feio das viagens
a noite às costas
e o vento nas janelas
e pessoas que entravam e saíam por elas
ou ficavam sentadas
e de pé
a olhar estupidamente o espaço em frente
o espaço mais além que já não tinha gente

Wednesday, August 15, 2012

Robert Bréchon

A morte recente de Robert Bréchon (1920-2012) despertou na memória dos especialistas de Fernando Pessoa a biografia que Bréchon publicou e se tornou marcante pelo novo olhar que trazia sobre a vida e obra do nosso poeta. 
Mas poucos recordaram a sua biografia de Henri Michaux: 
HENRI MICHAUX, La Poésie comme destin (éditions aden, 2005) talvez ainda mais marcante para os estudiosos de Michaux, pintor e poeta cuja obra nos desafia ainda hoje, pela sua complexidade, e que Bréchon, que foi seu amigo, acompanha numa viagem de alma páginas adentro nesse seu livro. 
Começa por contar como o conheceu, e como diante dele se sentiu primeiro intimidado. E como pouco a pouco uma relação de iguais se foi estabelecendo.
Também eu conheci Henri Michaux : um privilégio que me emocionou profundamente.
Ele dirigia ao tempo (há muito tempo) a revista HERMES e eu já me interessava por matérias ligadas à simbólica hermética e tinha lido, em Paris, alguns dos livros de Michaux.
Escrevi-lhe, pedindo alguma orientação para o meu estudo e para as minhas leituras futuras (estava já a pensar numa futura tese de doutoramento).
Respondeu logo - ah diferença para os portugueses que não respondem nunca! - e recomendou-me um autor que eu não conhecia, tradutor de Jung, fundador da Revista Junguiana de Paris, Etienne Perrot, que ele conhecera e cuja orientação (alquimia junguiana) considerava ser muito mais útil para mim. 
Assim fiz, escrevi e depois travei conhecimento com E.Perrot, com quem mantive laços de orientação e trabalho durante muitos anos.
O que desejo salientar é o modo acessível e amável de Henri Michaux: tempos mais tarde, numa das galerias de Paris que expunha obras suas (as célebres Encres) haveríamos os dois de comentar a minha paixão pela alquimia e a ajuda inicial que ele me tinha dado.
Encontro na Biografia de Bréchon, para voltar a ele, muitos detalhes destes, que nos fazem gostar do artista, mas tanto ou mais do homem que foi, e do destino que assumiu como poeta.
Eu acrescentaria também pintor: pintou a alma dos seus poemas, como os poemas pintavam a sua própria alma, a sua energia por vezes descontrolada, mas sempre tão iniciadora (iniciática mesmo) nos segredos da alma: luminosos ou negros, como em certos momentos de abismo que viveu e descreve em obras como Misérable Miracle (1956)
Bréchon fala do destino de Michaux como poeta que ele mesmo foi: era poeta, discreto e falava pouco de si.
Deixo a minha homenagem, eu que o conheci antes que ele conhecesse Pessoa, mas já amando Lisboa, onde vivia.
E sugiro que se traduza para português esta sua obra: não haverá melhor guia para o destino poético de alguém como Michaux.

Monday, August 06, 2012


Escrito para quem gosta de contos, da noite, dos segredos da lua que fascinam as crianças. Com as inspiradas ilustrações igualmente "nocturnas" do Pedro Gama. Para ler em férias....e durante o ano!