Monday, March 26, 2012

A Valquiria


 Continuando com esta ópera grandiosa de Wagner, vemos que no segundo Acto se dá então a ver o brilho esplendoroso da Valquíria, Bruennhilde, também ela filha de Wotan e sua preferida, talvez por ter sido gerada com ERDA, a Grande-Mãe, a Natureza cuja voz mística e profunda Wotan não respeitou, fazendo com que a maldição do anel destrua os deuses e com eles toda a esperança de um mundo melhor. Algo que se verá no CREPÚSCULO DOS DEUSES.
De início tudo parece bem no melhor dos mundos, mas a ilusão depressa se desfaz. Surge a severa e impiedosa Fricka, a quem o dever diz mais do que o amor, ainda menos a paixão, pois Wotan, infiel e sempre apaixonado, mas por outrém, não lhe inspira respeito. Assim, enquanto antes pedira a Brunilda ( aportuguesando o nome ) que protegesse Siegmund, depois de ceder cobardemente à exigência de Fricka ( as razões dessa moral parecem pouco credíveis, mais próximas do ciúme do que de outra coisa ), agora exige e com brutalidade que deixe morrer o herói na sua luta com Hunding,o marido de Sieglinde.
As belíssimas Arias de Brunilda exprimem uma consciência moral que falta ao pai dos deuses. A sua voz é a verdadeira voz do Amor e do respeito pela palavra dada.Wotan dissera ao filho que uma espada especial lhe estava reservada bem como uma glória merecida.Deixou-o aceder à espada, tão facilmente como depois lhe retirou todo o apoio. É Brunilda quem se escandaliza com o comportamento do pai, é ela que tenta fazer com que Siegmund não enfrente o inimigo, e será ela quem salvará Sieglinde de um triste destino, não a deixando cair nas mãos do cruel marido.
Wagner põe à discussão, neste segundo Acto, a Consciência e a Honra. Por outras palavras dá-nos de novo a pensar o que significam o Bem e o Mal, numa época (como a sua, de resto) em que o progresso que a Revolução Industrial parecia trazer abafaria as razões mais nobres da Liberdade, do Amor, da Igualdade, da Fraternidade e outros sonhos que pouco a pouco cairiam, como se verificou nas óperas seguintes (e na própria História da Alemanha).
A cobardia moral de Wotan traça o destino do herói.A esfera pendular cessa o seu movimento (ideia fantástica do grande encenador-leitor que foi Chéreau ).
Na última cena, a preocupação de Brunilda com o primeiro pedido do pai (e a palavra dada por ele a seu filho) faz com que tente proteger Siegmund da lança traiçoeira.
Wotan irrompe furioso e quebra a espada: In Stuecke das Schwert ! Que se quebre a espada !
Brunilde foge com Sieglinde e Wotan ameaça castigar a filha que não respeitou a sua ordem.
Retira-lhe a condição divina, fá-la cair em sono profundo no alto de um rochedo rodeado de fogo que só um grande herói poderá atravessar.
Anselm Kiefer pinta em 1980 um acrílico que faz de Brunhilde uma espécie de bela adormecida : a que vemos na imagem colocada ao alto.

António Tabucchi

Agora o seu rosto será visto, um pouco por todo o lado.
Por uns dias, por uns meses.
O que farão dos seus livros?
Haverá Bibliotecas, ou Escolas, a comprá-los?
E os amigos a quem dedicou alguns, irão às suas estantes procurá-los, para reler ou dar a outros para que leiam também?
Deixarão na mesa de cabeceira este ou aquele preferido? Reparando na caligrafia delicada das  generosas dedicatórias?
E antes de adormecer recordarão a suave melancolia do olhar?
Um olhar que desvendava o mundo: na sua beleza, na sua mesquinhez.
O rigor da palavra não era nele um artifício da arte, era o prolongamento natural do seu rigor de carácter, limpo, sem hipocrisias.
Descreveu em Afirma Pereira um país, Portugal, nas décadas de 30-40, onde uma burguesia de pequenos funcionários olhava à sua volta com suspeição, e muita reserva feita de temor.
Temor que a constante presença da polícia política quase justificava.
Digo quase.
Porque há momentos em que a dignidade obrigaria ao protesto, e ao exemplo.
Há na vida e na obra de Tabucchi esse  apelo ao exemplo, e sinto que tanto mais haveria a aprender com ele, se não nos tivesse deixado, em plena Primavera.
Passaram mais de dez anos sobre um belo Colóquio de Homenagem, na Fundação Gulbenkian: e António, amigo de filósofos, pintores, poetas, eruditos, tradutores, ali conviveu com eles, reunidos em breves quatro dias. Agora penso que deveriam ter sido  anos, e não dias. 
O Tempo foi afinal muito severo com ele, a Parca estava atenta, e ciumenta. Aguardava o momento, que chegou num dia de Primavera enevoada. 
António cedeu e foi com ela, nós ficámos mais sós e ainda mais pobres.

Sunday, March 11, 2012


JORDI DOMÈNECH  ( Sabadell 1941 – 2003): PORTAS E LIMIARES 


Nasceu em Sabadell, arredores de Barcelona e berço, pelo que fui descobrindo, de um grupo de artistas, poetas, pintores, que ali já tinham ou vieram depois a adquirir as suas casas, e nas montanhas circundantes os seus profundos lugares de inspiração.
Já falei de Perejaume, a quem dediquei um poema, publicado em 1997, no meu livro
ENTRE SILÊNCIOS :

Visitarei um dia
essa floresta
perdida no alto
da montanha
com a famosa caverna
das palavras
por onde fugiam 
ratos
e morcegos
arrepanhando os sonhos
do poeta
Poeta que já não escreve:
ergue palavras-pedra
escolhendo cada palavra
com cuidado
obedecendo às ordens
do Senhor da floresta
o Rei dos Álamos
que o obrigava a construir
cavernas
com as palavras escuras
das pedras
que encontrava

palavras que eram castelos
caves túmulos muralhas

palavras que aprisionavam
e que ele agora
esquecia
e recordava...
(y.k.c.,1997)



Confesso que fui surpreendida, com grande desgosto, pela morte de Jordi, com quem tinha estabelecido uma relação de amizade fraternal, e a quem devemos, nós poetas portugueses, o seu gesto de elegância, de tradução numa plaquette de 1997, feita em Sabadell, a terra mágica de um conjunto de poemas que intitulou
 DINANT A BARCELONA,
SOPANT A LISBOA
(PER A LA NÚRIA, QUE HI ERA) : Núria, sua mulher, então falecida deixando-o a ele profundamente abalado.
Na plaquette que nos ofereceu encontramos os nomes de Casimiro de Brito, Egito Gonçalves, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, José Viale Moutinho, Nuno Júdice, Rosa Alice Branco, Yvette Centeno. 
Vê-se pela escolha dos poemas que conhecia bem a nossa literature, e sinto que lhe é devida a homenagem que agora sou eu que lhe desejo prestar.
Estará o poeta junto da sua amada Núria, quem sabe a acompanhar o meu trabalho de renda: pois a tradução de um poeta é sempre um trabalho de minúcia, de renda, de carinhosa empatia.
Jordi nasceu num meio operário, o pai foi perseguido pelo regime de Franco devido à sua fidelidade à República. Ele, já maior, estudou desenho industrial na Escola Massana de Barcelona.
Autodidacta na formação literária, com obra publicada desde 1970, é sobretudo no livro que escreve depois da morte da mulher, em 1997, AMB SENSE, COM SENTIDO (ed. 2002) que atinge o ponto mais alto e impressionante da sua carreira. Poeta transgressor, de rupturas e olhar inovador é considerado um dos maiores da Catalunha do século XX. 
Foi igualmente tradutor de inúmeros autores, ao longo da sua vida, e por essa razão foi criado em 2005 o Prémio Jordi Domènech DE TRADUÇÃO DE POESIA.

Os poemas escolhidos pertencem ao livro História da Arquitectura ( ed. 1995). à excepção dos dois últimos e por aqui se poderá ver como o seu olhar se comprazia em descobrir, revisitar, cidades, espaços de museu que para ele não são apenas cemitérios mas antes refúgio e memória de dôr como de arte e de artistas.


SALAS DO MUSEU DE LAMEGO

Estas salas brancas por onde o homem
deambula por detrás dos seus óculos
de armação pesada e lentes grossas
( a sua miopia magistral ) 
(nas paredes seis tapeçarias flamengas)
perscruta, entre os fios, misteriosos
rituais: lã, seda, labirinto
dando a ver aos meus olhos personagens
que já não vejo.
Na mão direita levam 
cachos de touriga onde bate o sol.


POMBAL NO PÁTIO DA CASA DE BONASTRUC ÇA PORTA,
NA JUDIARIA DE GERONA

Triangulação dos azulejos
repetidos sobre descoloridos
ocres de chuva. Descida até ao fundo
de um jardim sem fundo(as flores vermelhas
sobressaem do verde) (os sefiroth
que caem das mãos) (alusões 
ao pensamento moderno? ). Banhos rituais.
O cego, vidente. As palavras formando
um vazio de sabedoria. Os gerânios.


NA ESCURIDÃO, O LOUREIRAL 

Na escuridão o perfume do loureiral
é de piedosos e apagados aromas: mais próprios
do húmus: o estropiado, belo, espia
o rumor que sobe ( o cérebro mais
alto dos inomináveis estados).
Sábado, Dezembro, à noite. Desfazem 
a memória armários cheios de livros
no palácio paterno que alberga o gelado
fascismo. O insuportável rumor
de asas de anjo que tansportam e deixam
suavemente em terra a casa santa
com revestimento de mármore 
de quinhentos, fumo e fartura de pombos.
A farsa começa a expansão.

(do livro “contas da revolução” ) 


POR ESTAS PRAÇAS, RUAS E ESCADAS

Por estas praças, ruas e escadas
correu o sangue (Não é uma frase
feita: parece que foi literalmente 
assim). Inocência. A aura move
as caras dos espectadores, sobe
uma dôr pelo seu flanco esquerdo,
imperial, alguém que circula com
algma coisa descabeçada e um
velho estranho que come um galo
da Índia com chanfana. Tudo entre
dois enormes espelhos um pouco
inclinados reflectindo muitíssimas vezes
os meios corpos, as caras, os poentes,
durante aquele longo fim de semana.

( do livro “contas da revolução” )