Sunday, June 08, 2014

Ana Luísa Amaral
ESCURO
Na poesia não há matérias proibidas, à imaginação do poeta tudo é permitido.
Dizia um antigo alquimista, Dorneus, que teve grande influência entre os seus pares, cito apenas Paracelso, que "a imaginação é a estrela no homem".
Assim era inscrita a criatura humana, o homem, num universo mais vasto, o conhecido e o desconhecido. As epígrafes iniciais (não iniciáticas, mas quase) desta última obra de Ana Luísa Amaral deixam indícios: de um místico poeta e profeta como William Blake, e de um santo, São João da Cruz, que lhe é anterior e cuja noite escura da alma foi longamente glosada ao longo dos séculos: pois toda a alma tem a sua luz e a sua escuridão, e há momentos em que apenas a escuridão, o veludo perverso do seu silêncio se conseguem sentir.
Paul Celan foi, recentemente, o mais exímio poeta da escuridão e do silêncio, face a um Universo que Deus terá criado sem se preocupar com o seu destino...
Este é o efeito de um bom livro: ao ser lido conduz-nos a tantas outras paragens...Para fechar este parêntesis, recordo uma frase transcrita por alguém no Facebook: 
Pergunta um colega a Einstein " o que é mais importante, o conhecimento ou a imaginação?" 
Responde o sábio, "a imaginação; o conhecimento leva-nos de A para B; a imaginação leva-nos de A para todo o lado".
Desta vez a imaginação levou Ana Luísa para uma travessia que a deixa entre Camões e Fernando Pessoa, os Lusíadas relidos, a Mensagem retocada, e no escuro das múltiplas viagens, dos sonhos, das utopias - uma nova proposta que não se abre à luz de nenhum caminho, antes se fecha na contemplação de um mundo, o actual, em que tantos egoísmos nacionalistas, tanto sofrimento e morte prevalecem.
Viveu-se outrora uma utopia? Vive-se hoje o puro desengano.
O fio condutor destes poemas, que os torna talvez menos poéticos do que se esperava e muito mais reflexivos e descritivos, é no fundo uma meditação da História: nossa e dos outros, já que na escuridão ou na luz do Universo tudo é uno.
Ninguém me levará a mal que cite apenas o início, foram esses os versos que me entusiasmaram, pois o início do CLARO-ESCURO nos fala "da mais pura alegria", a da infância ao amanhecer, numa aldeia que seria a de um Alberto Caeiro - mas ele nunca foi criança- amanhecer de luzes, de cheiros, de barulhos, a vida aberta para um mundo de escolhas, a luz no escuro de que se falará depois:
Ontem à noite e antes de dormir,
a mais pura alegria

de um céu

no meio do sono a escorregar, solene
a emoção     e a mais pura alegria
de um dia entre criança e quase grande  

e era na aldeia, acordar às seis e meia da manhã, 
os olhos nas portadas de madeira, o som
que elas faziam ao abrir, as portadas
num quarto que não era o meu, o cheiro
ausente em nome

mas era um cheiro
entre o mais fresco e a luz
a começar     era o calor do verão,
a mais pura alegria

um céu tão côr de sangue
que ainda hoje, ainda ontem antes de dormir,
as lágrimas me chegam como então, e de repente,
o sol como um incêndio largo
e o cheiro     as cores

Mas era estar ali, de pé, e jovem
e a morte era tão longe,
e não havia mortos nem o seu desfile,
só os vivos, os risos, o cheiro
a luz

era a vida, e o poder de escolher, 
ou assim o parecia:

a cama e as cascatas frescas dos lençóis
macios como estrangeiros chegando a país novo,
ou às portadas    abertas de madeira
e o incêndio     do céu

Foi isto ontem à noite,
este esplendôr no escuro e antes de dormir.
....

Fico por aqui, a continuação iria obrigar-me a uma viagem pelos tempos, antigos e presentes, roubados de emoção.

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