Friday, January 29, 2016

Volto às Rosas de Rilke, regressando a Dante e ao Paraíso...

Falar de rosas...

 Gosto de rosas.
Sonho com tantas coisas, mas que me lembre nunca sonhei com rosas, nem escrevi nada em que alguma rosa entrasse, a não ser nas célebres gravuras alquímicas de que me ocupei outrora.
Mas leio, leio rosas, neste ou naquele autor, geralmente são poetas, como Rilke ou Pessoa, e há sempre na imagem dessas rosas que leio uma essência mais forte, que as sustenta, lhes confere uma parte desafiadora de mistério.
Por um lado tão frágil ( ou será apenas na aparência? ) e por outro tão forte, tão centrada em si mesma.
Rosas de Verão, rosas de Inverno, rosas de todo o tempo. Será a sua forma redonda figuração do Tempo, como insinua Rilke?

Eram brancas, as rosas, antes da morte de Adónis, que as tingiu com o seu sangue.
Daí o vermelho-morte, daí o vermelho-vida...
A rosa sacrificial.
As pétalas que envolvem, os espinhos que ferem e que matam.

Vejo na rua dois velhos, com os seus sacos de compras.
Vão devagar, ela à frente com dois sacos, parecem mais pesados, ele atrás, só com um e arrastando os pés.
Levam o pão que ninguém lhes daria, como ninguém ajuda com os sacos...
Está sol, e o calor é benção para aqueles ossos ressequidos...
Vão de cabeça baixa, olhos fixos no passeio, por causa de algum buraco. Cair seria terrível, não poderiam levantar-se!
Mas falava eu de rosas.
As vermelhas de Rilke, as fechadas em si mesmas, como se fecham as vidas.
Num tratado de alquimia li outrora: a rosa dá o mel às abelhas.
As abelhas seriam, no tratado, os alquimistas afanosos em busca do mel da vida, do ouro que não fenece...
Passa a vida à nossa frente, como os velhos ali, que estou a ver como passam, e sei que não é verdade. Não há ouro disponível.
Em que momento perdemos a razão, somos e seremos condenados?

Fernando Pessoa que, diante do rio, se interrogava sobre quem era e o que era ser-se rio e correr, e estar, como ele ali estava, a ver imóvel essa corrente de consciência e de vida, lera os poemas de Rilke.
E acreditara, se calhar, que a morte daquele poeta se devera à picada de uma rosa, que lentamente o matara.
Na verdade morreu de lenta leucemia, mas lenda é lenda.
É assim que Ricardo Reis, heterónimo de Pessoa, aristocrata no distanciamento de tudo o que fosse sentimento - amor ou vida - retoma o mito de Adónis para evocar o tempo, no poema de Lídia:

As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
o seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos

Sabedoria e recusa.
Adiante, noutro poema, dirá, como bom alquimista:
 "A obra cansa, o ouro não é nosso".
Podia ser o Mefisto de Goethe, autor que também leu, (como parece, pela sua biblioteca, ter lido sempre muito, ter lido tudo).
Pessoa sofre do cansaço de um universo que não consegue ou nem mesmo pretende decifrar, enquanto Rilke, em pura contemplação, se funde com o mistério da rosa: eterna redonda, e mesmo quando se abre permanecendo fechada, na sua perfeita circularidade de camadas e camadas de pétalas perfeitas.
Renúncia, é o que vamos lendo na poesia de Pessoa/ Ricardo Reis.
Excesso e abundância, nos poemas de Rilke:
Uma só rosa, é todas
as rosas (6)
Ou ainda:
Tenho uma tal consciência
do teu ser, rosa completa,
que o meu consentimento
te confunde
com o meu coração em festa.
(XI)

Não há festa no coração de Ricardo Reis, há bruma, há nevoeiro, e o apelo a Caronte a quem deseja depressa entregar o custo da passagem: nem se interessa tanto por chegar, apenas por esquecer, e para isso lhe serve o rio da memória, o Lethes...

Que posso ver na rosa que outros não tenham visto?
A beleza já foi por demais cantada.
A Unidade? A Multiplicidade, desdobramento de pétalas e pétalas?
O Efémero que o desfolhar logo prenuncia, como a vida, que passa tão depressa?

No coração da rosa, o olho do furacão.
O ninho em que se formam estrelas.
É de estrelas, não de rosas, que devemos falar...
Do rodopio que ilude, que tudo arrasta consigo, numa torrente de negro, com nome por designar.

Dizer apenas rosa não adianta nada:
a rose is a rose is a rose
is a rose...

Mas penso em Dante, na Divina Comédia; que Rilke e Pessoa leram, e que eu deveria ler (reler) no Canto XXXII, onde no centro está a rosa, que é a Virgem, e se fundem, no brilho, o sol e as outras tantas estrelas, como pétalas, derramando sobre a Amada o seu brilho perpétuo.  

Não duvido que Rilke tenha lido Dante, e através do seu percurso mais íntimo e secreto, caminhado para a doutrina que ali se esconde, entre as referências clássicas e as bíblicas, uma nova doutrina do Amor.
VITA NOVA foi a obra tardiamente descoberta no século XIX, de tal modo grande fora o impacto da Divina Comédia.
Como sublinha o tradutor francês Louis-Paul Guigues (ed. Gallimard, 1974) é com esta obra que a "introspecção surge na poesia": estamos a falar do ano em que Dante a começa, em finais do século XIII, uma época de grande misticismo, na Europa do norte (recordo Hildegarda de Bingen) como do sul, (a mística sufi de Ibn Arabi e outros). Mas é também a época das grandes questões e questionamentos teologais e tentativas de racionalização das respostas a dar. Dante não podia viver à margem de tais questões, e também ele procurou sentir e dizer, viver e explicar.
Vita Nova não pode apenas significar vida nova, sem mais, no sentido de alguma mudança de vida que tenha acontecido ou venha a ser desejada, esperando que aconteça.
Dante não usa o termo vita , mas etate : idade. Como leremos em Joaquim de Flora e seus seguidores, a Idade do Espírito Santo como tempo novo (no Liber Figurarum).
Na Vida Nova de Dante encontramos, no capítulo XXIII, a seguinte referência:
"dama compassiva e de idade nova".
Poderemos ler jovem? jovem de idade?
Beatriz no Canto XXX do Purgatório exclama, referindo--se ao poeta:
"Eis o que ele era na sua juventude".
Como quem já anuncia as grandes mudanças que hão-de vir e só o amor consente.
Primeiro pelo sofrimento, com a morte de Beatriz:
 "uma inteligência nova que o Amor
chorando lhe concede" (soneto XXV)

Percebe-se que, com Beatriz, e seu amor por ela, uma tranformação - uma Vida Nova terá em breve lugar. Beatriz virá do céu à terra revelar o milagre.
Dante escreve os primeiros sonetos cerca de1283, usando os mesmos modelos da poesia cortês da época. Seguindo esses modelos, que não inova, pois já na poesia Provençal a nobreza do amor colocava os amados acima da nobreza de título.
Dante sabe dissertar sobre o amor, como escreve o seu tradutor francês (p.11).
Por volta de 1170, André le Chapelain, autor de DE amore era lido em Florença e apreciado pelo seu "doce estilo". Doce estilo pelo sentimentalismo comovido, abundante em lágrimas e suspiros, que levará o coração do amante a identificar-se plenamente com a amada. É este o estilo que Dante transformará em dolce stil nuovo.
Mas o ambiente em que a sua escrita decorre é o conhecido ambiente "cortês" e "espiritual" da época.

Há um entrecruzar de referências que nos conduzem por  via do amor de Beatriz, aqui e na Divina Comédia, a outro conjunto de interrogações.
Beatriz é descrita com algo de NOVO, um milagre da Santa Trindade, uma revelação.Temos, no capítulo XII, as falas do AMOR:
É um capítulo carregado de solenidade: Beatriz recusou-lhe a salvação e Dante retira-se para um quarto e tem a visão de um jovem, de vestes muito brancas, que olha para ele, o chama e lhe sorri, dizendo: " Meu filho, chegou a hora de abandonar as nossas ficções".
Quem é este jovem?
Dante julga que é o Amor, que muda muitas vezes de aparência. Mas o jovem desata a chorar e declara:
"Eu sou como o centro do círculo a que se dirigem, equidistantes, todos os pontos da circunferência, mas tu não és assim".
Dante, perturbado, quer perceber melhor.
Mas recebe, como resposta: "não peças mais do que te pode ser útil".
Estranha resposta, que deixa a interrogação do que fazer:evitar excessos? respeitar a distância?
Seguir-se -á  uma longa reflexão, sobre o amor e a relação do que ama com o objecto do amor: terreal, celestial? Operando como, nessa viagem mística, guiado por Beatriz, tão enorme mudança?
A ponderação da Geometria, de uma possivel Quadratura do Círculo, não terá deixado o poeta indiferente, pois há uma Geometria da Alma, no espaço cósmico que culminará no Paraíso, em que a doutrina do Centro, as rosas e a Rosa Suprema no coração do centro, adquirem, por muito que não se queira, simbolismo especial.São conjunturas, quem sabe, mas têm algum sentido.
Um ponto que é o centro cuja luz irradia com tanta intensidade, - era revelação suprema. Do Templarismo da época? O símbolo do centro, do coração como era lido enquanto fonte de vida e luz suprema, era um dos símbolos dos Templários.
Nas Ordens iniciáticas, como as do Santo-Graal, fazia-se coincidir o punctum mundi com o coração de Cristo e  daí, como refere Louis-Paul Guigues (p.19) a veneração posterior do Sagrado-Coração de Jesus. Nas palavras de Cristo: "O meu Pai e Eu somos Um".

Voltando à situação de Dante, perante o Jovem de luz: ele diz-lhe que é o ponto centro do mundo, mas Dante ainda não é nada e está longe de se ter unido a ele.

Não falemos mais, a partir daqui, de amor cortês, mas sim e apenas de via mística para uma União com o Divino de que Beatriz será a mediadora.
A dado momento Dante faz a identificação de Beatriz, luz de vida, com Cristo, luz de renovação.
Beatriz já dissera que estava no coração da GRANDE ROSA, quando lhe lembra que ele andava ainda perdido nos assuntos do mundo...
O que aqui se faz é um apelo à vida contemplativa, ao retiro que se abre ao desejo de união mística com um Sobrenatural que os afazeres (ainda que de paixão) na vida normal não permitiriam. Fechando de novo com uma citação de Louis-Paul, Dante ascende à mudança de uma VITA NOVA para Vista nova, no deslumbramento da rosa, do centro, do coração do Paraíso que se lhe abre e pode finalmente contemplar.








 

.

2 comments:

Henrique Chaudon said...

Que beleza, minha amiga! Grato.

Yvette Centeno said...

Querido Henrique acabarei por escrever mais nos blogues do que nos livros, que depois se perdem não sei por onde!
Ainda bem que gostou, abraço amigo,
Yvette