Tuesday, December 06, 2016

Eduardo Quina, Labirintos e Sombras

De Eduardo Quina, dois livros de poesia:
CORPO:LABIRINTOS (2009-2012) ed. Licorne
e SOMBRAS MORTAS ENTRE OS DEDOS (Apuro edições, 2015)
Chegaram-me do Funchal, por estes dias, em que houve um encontro sobre a Obra de Herberto Helder, que tem deixado marca em muitos dos poetas contemporâneos.
Como Pessoa, não se pode fugir à marca de Herberto Helder, que quando releio me apetece situar entre Lautréamont e Rimbaud, ou resultando de uma fusão intensa de ambos.
O autor apresenta-se como um professor de filosofia que às vezes escreve. E é quanto basta, diz, o resto pouco importa.
Na verdade importa, porque publica o que escreve, adivinhando que cada livro ajuda a uma viagem, que é de muitos caminhos, os dele e os dos seus leitores.
Como também me aconteceu a mim, quando publiquei num site on line os meus poemas de OUTONAIS  (ed. blurb, 2011) falta no livro de Eduardo o Índice...e um índice ajuda muito a quem deseja escolher, e escrever sobre este ou aquele poema...
Reparei nas epígrafes, que são sempre um subtil "indicador" de leitura e vou começar por aí: A iniciar o ciclo de "corpo a corpo" podemos ler de Raúl Brandão (vem à memória o Húmus de Herberto Helder, que também o leu) este pensamento:
" Afigura-se-me que estes seres estão encerrados / num invólucro de pedra: talvez queiram falar, / talvez não possam falar".
Sem ir agora reler Brandão, transito para os seres - todos eles seres de pensamento e palavra buscada - que são os poemas. Os poemas, encerrados nas palavras-pedra, que o poeta tem de abrir, para que possam voar, essas palavras que ele busca no intervalo do "querer e  poder ou não poder".
As referências à materialidade do corpo, o encontro, o sofrimento, a ausência e a memória, sublinham ambiguamente ora o desejo ora o apagamento. O ciclo tem 29 poemas e ao percorrê-los, devagar, adivinhamos a ideia do terreal em oposição ao celestial, muito ao gosto do que seria o imaginário da Pedra alquímica, que também Helder muito bem conheceu. A terra é a alma do poeta feita poema, por palavras pedras que se abriram, como os alquimistas abriam o "ovo alquímico" : húmus que se alimenta e alimenta a Vida.

Adiante, a abrir novo ciclo, "corpo e floração" temos Vergílio Ferreira em epígrafe:
"Regresso a mim, ao meu corpo distinto e classificável, onde todo o milagre aconteceu. E pergunto-me, suspenso, como foi possível..."
(V.F.,Invocação ao meu corpo)
Continua presente a reflexão sobre o corpo, o seu mistério, num ciclo de 18 poemas.
O primeiro dá o tom, uma chave parcial para o que se vai seguir:
1.
um rosto de pedra
onde se escreve a cinzel
a sua forma quase humana.
medimos o ritmo dos batimentos
para assegurar a necessidade da espécie:
animal bicho
que se pensa e reflecte.
(p.38)

A chave reside nesta imagem final de um animal bicho que se pensa (tem consciência de si, ou procura ter ) e reflecte. Vergílio, o nosso grande escritor existencialista, é o que faz, pela permanente revisitação da consciência, de si e dos outros, na esfera de um mundo que é real e ficcionado, ao mesmo tempo. Mas em que o real, na sua crueza, permanece. O mesmo leio nos pemas deste ciclo: uma realidade em que o imaginário é mais despido, se torna mais crú, o corpo é ferida e sangra, atravessando o leito das palavras ( nos poemas finais, 17 e 18). Herberto Helder, e não apenas Vergílio, passou também por aqui: a ferida, a nomeação evidente,  que banaliza o discurso, o sangue que talvez redima, ou não, mas que entretanto liberta.

No último ciclo, "labirintos", escolhe-se Gonçalo M. Tavares e uma citação com o seu quê de Kafka, perdido nos caminhos para o célebre Castelo:
"Não se vai a nenhum lado por muitos lados, ou:
há muitos caminho para não se ir a lado nenhum: 
eis o labirinto".
Eis a lição: um só caminho, uma coerência feita (quem sabe se de pedra, novamente, da sabedoria de matéria sublimada) que conduzirá não à encruzilhada de Borges, mas à intimidade resguardada. Sendo filósofo, como diz, o nosso poeta há de ter lido Wittgenstein, e o célebre aforismo: " wovon man nicht sprechen kann, darueber muss man schweigen". Devemos calar aquilo de que não podemos de falar.
Ou então, quem sabe, o dramaturgo Valère Novarina, que o contradiz, afirmando: " ce dont on ne peut parler, c'est cela qu'il faut dire". É preciso dizer aquilo de que não se pode falar...
Entre uma reflexão e outra, o caminho de cada poeta, na sua busca, na sua perplexidade e interrogação.
São 26 os poemas, alguns próximos da condensação dos Haikai, outros mais ampliados, na mesma afirmação do corpo que se interpela, o do outro, ora feito matéria ora quase rosa mística de Dante.
Por todos sopra um vento de delírio, precisamente o que perturbava Platão, na sua cidade perfeita: daí que expulsasse os poetas...
O lugar do poeta é o lugar da palavra. Daqui não pode fugir.

Não falarei muito mais, agora de Sombras Mortas entre os Dedos (2015).
São como balanço, estas sombras, uma continuação de caminhos sem adeus, a busca será de um só caminho, como já se anunciara.
A escrita teve o seu tempo, e continua a ter: um tempo de regresso, de releitura de alguns, os mais amados, como é H.H. e de tentativa de diálogo sempre em aberto.  Porque a voz dos poetas nos interpela e obriga a resposta que nos saia da alma, e não da moda.
A palavra em aberto atravessa as insónias felizes: nessa falha de sono falarão os mitos, os arquétipos, as pulsões mais ocultas do nosso inconsciente.
Sublinho especialmente a evocação feita a H.H. nos poemas 26 e 27  (pps. 36, 37).

A Casa de H.H.
fico a olhar a tua infância.
nas têmporas a violência discreta das flores
e as leis da tua sina: 
uma morte simples.

uma cosmogonia,
palavras para a transformação do ouro.
música dionisíaca
ou
a possível construção do mundo
na beleza dionisíaca das mães.

Serão as sombras, escapando entre os dedos, aflorando à eterna consciência de ser, de ter sido, em algum momento mais perfeito, ainda que inacabado, e de continuar a ser para todo o sempre. Um sempre que se projecta no Tempo, o que me faria  trazer à baila o célebre tratado de Heidegger, sobre O Ser e o Tempo...
No poema 27,
"o peixe de H.H."descobrimos a releitura atenta:
um peixe emerge
no frágil líquido das palavras.
e espero 
impacientemente
a sua natural transmutação de côr.

criatura extinta
que nasce do excesso demiúrgico
das tuas mãos.

A imagem da transmutação da côr é alquímica, como a propósito dos dois peixes, o da alma e o do espírito, podemos descobrir lendo o tratado de Lambsprinck  (século XIV ), La Pierre Philosophale, na sua Primeira figura. A transmutação terá lugar quando espírito (princípio masculino) e alma (princípio feminino) se fundirem: " O mar é o Corpo, e os dois peixes, o Espírito e a Alma".
Dir-se-á que o excesso, e a impaciência, não são atributos naturais de um alquimista: mas são os dos poetas, buscando, como Rimbaud ou Lautréamont, a perfeição invasiva, a "Iluminação" do corpo entregue ao ouro dos místicos  que em cada poeta se pode recuperar.













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