Wednesday, March 30, 2016

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Volto a ler o livro de Comte-Sponville sobre a Felicidade:
Le bonheur, désespérément.
Filosofamos, diz ele, porque sofremos.
Não sei se concordo: filosofamos porque pensamos, o pensamento torna-nos exigentes, e não necessariamente sofredores!Gosto do modo como termina o livro, recuperando Spinoza:
" a beatitude (leia-se a felicidade) não é o prémio da virtude, mas sim a virtude ela mesma..."
Caímos, afinal na Ética.
E sobre a Ética, o sentido moral da vida, em cada momento, desafio, tentação, haveria tanto a dizer.
Nunca estaremos à altura dessa exigência rara que nos é colocada ao longo da vida, nunca seremos plenamente merecedores de uma tal beatitude.
Podemos praticar esta ou aquela religião, respeitar este ou aquele ou mesmo todos os dogmas, não é na fé, (um dom que nada explica e por isso é aceite sem mais) mas sim no comportamento, na Ética, no respeito que a Moral exige - amar o outro como a si mesmo - que a felicidade pode ser encontrada.
Felicidade no sentido de que se cumpriu a vida, no que a vida exigiu e permitiu.

Ouvimos, ao crescer, que todo o homem nasce livre e com natural aspiração a ser feliz.
Mas o que vemos, ao envelhecer, é bem tristemente diferente...
Num mundo em convulsão nem todos nascem livres, e quanto a ser felizes...está tudo dito.
Talvez por isso o filósofo tenha sentido a necessidade de lembrar e discutir o conceito de felicidade, desde Platão, (relendo o BANQUETE) até aos nossos dias...
Em Platão encontramos claramente, no seu mito do Andrógino, a pulsão da busca do Outro, que permitirá então o ser feliz, por se ter recuperado a completude primordial perdida.
Comte-Sponville desenvolve as ideias de desejo e de esperança, no caminhar para tal felicidade.
Mas mesmo que não se atinja, são o desejo e a esperança que ajudam no caminhar.


Thursday, March 24, 2016

António Carlos Cortez, Animais Feridos


Animais Feridos

Primeira interrogação: de que nos vai falar este poeta? De um tempo cruel em que nenhum ser vivo está inteiro, completo e feliz no seu corpo e na sua alma?
De que toda a espécie humana se forma e deforma hoje em dia numa ferida rasgada, que ela mesma rasgou e não tem cura?
Falemos de animais, como Lautréamont falava da sua pulsão erótica pelo tubarão fêmea. Mas nessa violência primitiva, selvagem por momentos, o poeta sabia que o desejo o transportaria para um outro nível, o que ele ambicionava, da sua criatividade: a abismal fusão com os elementos fundadores, primordiais, de que Gaston Bachelard nos deu conta em muitos dos seus ensaios.
Estas feridas arquetípicas saram, e salvam, devolvem o ser à sua límpida consciência de existir.
Escrevi noutro post àcerca do mais recente livro de poesia de Gastão Cruz, poeta  que trago aqui por saber que A. Cortez o admira e certamente terá lido Óxido, de que me ocorre agora uma estrofe:
de cada vez se torna mais ardente / até ser casa ou roupa ou outra pele / que fere o corpo e finalmente o veste / do nome que é o dele....
Arrumo sempre mal os meus livros, e acontece que ao lado deste último de Gastão se encontrava um anterior, de 1990, de título já muito sugestivo: As Leis do Caos.
Ao longo de uma vida de permanente entrega à poesia, seus segredos, seus ritmos de bater do coração, descubro de repente (como na obra dos alquimistas) que do Caos se forma a Ordem  como nas Doze Chaves da Filosofia, de Basílio Valentino.
Mas não seria preciso ir tão longe: na epígrafe com que Gastão abre o livro, a citação de Eugene O'Neill, no século XX exprime a mesma ideia:
I see life as a gorgeously-ironical, beautifully- indifferent, splendidly suffering bit of chaos (1923).
O Caos é belo porque da sua indistinção, a seu tempo, a Ordem (poética) surgirá.
Em Noite interpel um poema de Baudelaire, o Mestre de todos nós, ainda hoje: Ah que le monde est grand à la clarté des lampes!
Gastão não quer perder a  lucidez  objectiva ( se tal coisa existe, na Arte) com que se definiram os Poetas da chamada POESIA 61.
Mas de verdade é a luz que torna o mundo grande, é a luz, ainda que apenas das lâmpadas acesas na escuridão do quarto, que amplia até ao estertor do infinito os sentimentos, as emoções, as pulsões mais ocultas do desejo.
Na escuridão, como no caos, a luz, a ordem que permite soltar "os leões do sol".
Há neste poema, Noite, um imaginário animal que não passa desapercebido pela sua dimensão simbólica: os leões do sol (é sabido que são o emblema solar da alquimia, por excelência), e a "grande cobra" que figura o "corpo do mundo" que na verdade só a luz poderá redimir da morte exposta.
Inspirando-se em KEATS, Sobre a Morte, já mesmo a fechar o livro, escreve o poeta:
Como é estranho que o homem, sobre a terra perdido / e levando uma vida de dor, o torvo atalho / não rejeite, nem ouse entender que acordar / é do seu caos futuro o único sentido.
Não insisto, deixo ao futuro leitor o que ele mesmo descubra, neste sentido oculto de um caos revelador.

Mas chegou o momento de voltar às páginas de António Carlos Cortez em Animais Feridos.
Comecemos logo pelo primeiro poema Náufragos, em que já na leitura se descobre um ritmo de soneto (os quatorze versos ao modo shakespeareano), um embalar das águas em que os mortos ainda assim parecem existir. A sua vida é isso: movimento.
A poesia de António, na sua harmonia quase obssessivamente musical, contém e contraria uma dôr (uma ferida) que se anuncia e se expõe como se nunca mais fosse vencida.
 De novo aqui os elementos nos envolvem: as águas em que nada se reflecte já; a pedra do olhar; a luz, ainda que negra, ou negra por maioria de razão; o fogo com que se incendiaram as estradas ( os caminhos possíveis e impossíveis).
Mas quando menos se espera- não estaria tudo dito? O poeta retoma a sua palavra para concluir sobre o que aprendeu, pelo caminho, e através do seu naufrágio previamente anunciado - "a vida é afinal /soma de perdas e o mundo / coração de pedra lançado /ao fogo que se vê de longe".
Na treva que envolve um mundo "só de ferro", mesmo assim se alude num último verso a um "cristal que é chama", não desistindo deste jogo de opostos que serão a substância da escrita que a si mesma se impõe o continuar...
Abre-se ao mundo.
Curiosamente, é neste livro de António Cortez que reencontro em parte a expressa doutrina, nem sempre respeitada, dos poetas do grupo de 61.
O olhar que se quer descritivo, objectivo, desenhando, como num mapa de cuidadosa minúcia, os momentos e os lugares. Não irei desfiar os títulos, já de si indicativos, nem muitos dos versos mais sugestivos deste ponto de vista. O leitor fará isso por mim.
Há uma dimensão abrangente, de cariz social, por vezes talvez mais do que poética: a descrição de um bairro, de um bar, evocação de  um pintor, de cidades que se viveram, de um rio como o nosso, que já deixou de ser o das perplexas interpelações de um Fernando Pessoa, e há também, como já em obras anteriores a explicitação que nada oculta, e mal seria se o fizesse, de um conjunto de leituras que me evocam um T.S.Eliott, o da Waste Land, para mim e para os do meu tempo, poeta tão erudito, tão directo e marcante, não descurando de indicar as leituras que conduzem, tantas vezes, o escondido fio do discurso.
Reconheço em António Cortez, neste como já em obras anteriores, uma cultura estruturada que não é comum nos tempos que correm, uma intensidade e uma voz genuína, na sua força, e uma  originalidade que não desdenha de outras vozes, outros antigos começos e recomeços, como quando escreve, também ele, sobre o caos : "Recomeçar / talvez um outro caos" (p.51).
Esta obra tem um título que remete para memórias antigas, por vezes, ou emoções recentes, mas retidas, por razões que só ao poeta dizem respeito. O que impele a mão do poeta, na sua escrita por vezes inesperadamente veloz, é a necessidade de não se perder nelas (ou delas).
Não deixa de ser interessante, para um estudioso da literatura portuguesa, que autores como Helder Macedo, Manuel Alegre e neste caso também, embora de uma nova geração (de um falar mais directo, mais despido, mas não menos original e sentido) esta necessidade de refazer memórias como quem refaz a vida.
A poesia é isso: escreve-se para viver, mesmo falando de sucessivas mortes!
Um acaso como aqueles de que vivemos, sem dar por isso, e que Jung chamava de sincronicidades, faz com que esteja agora a ler Tolentino de Mendonça, referindo-se no Semanário EXPRESSO a uma nova tradução das Cartas a um Jovem Poeta, de Rilke, da autoria de José Justo.
Não há acasos....eu tenho estado, precisamente, a escrever uma Carta que não enviarei a um Jovem Poeta e que interrompi por enquanto, levada por outras leituras e afazeres.
Vou ler a nova tradução, pois de Rilke leio tudo, também em tradução, e gosto de comparar com o original que Paulo Quintela, há tantos anos me deu a ler, em Coimbra.
O jovem deve sentir que a escrita é para si a vida. Se afinal consegue viver bem, consigo e com o mundo, sem que a busca de uma palavra essencial lhe faça falta, o melhor é poupar os futuros leitores...
Diz Rilke: Es gibt nur ein einziges Mittel. "Há apenas uma única maneira". E continua: "Mergulhe em si. Procure o fundamento do que chama escrever (...) confirme se  morreria se lhe fosse negado poder escrever".
A grande questão que se coloca ao futuro poeta é aparentemente simples: "muss ich schreiben?" Acentuando o verbo ter de, ou dever, num imperativo de vida ou morte, se a resposta fôr ich muss, ou o seu contrário.
Escrever é pois, segundo Rilke, um imperativo, ou não é nada e  nada significa.
Rilke tem o cuidado de avisar de que não é crítico literário, nem dá conselhos sobre o que lhe mostrem, pedindo uma opinião. E está certo, a um poeta não se deve pedir uma opinião, ser-lhe-á um exercício difícil. Mas outra coisa é o aprofundar, em cada um, e esse é o conselho dado, da razão do misterioso impulso da escrita.
Nasce da mais funda raiz do ser? Então a escrita impõe-se, por si mesma, e através dela o poeta, ao longo da vida, deverá dar sinal e testemunho desse impulso.
Ora o que nos deixa este novo livro de António Cortez é que também ele vive intensamente a lição de Rilke, e a pratica, escrevendo.
Que os anos futuros o mantenham assim: escrevendo e vivendo para continuar a escrever...e a viver.
Acabo este post numa Sexta-Feira da Paixão.
Deixo os votos, a todos os meus leitores, de uma Páscoa com leituras felizes.









Sunday, March 06, 2016

ROSAS E MAIS ROSAS

(Herberto Helder)


Li A Colher na Boca, no original que viria a ser publicado pela editora Ática em 1961.
Foi um deslumbramento, para mim que, habituada à literatura francesa, lia Prévert, lia Boris Vian e outros, do movimento OULIPO, não esperava, em Portugal, descobrir nada de tão intenso e tão inovador.
De fiel leitora de Herberto tive o privilégio de passar a amiga. Não direi íntima, as nossas vidas eram muito diferentes, mas sempre presente na leitura, na troca de cartas (raras) e de casuais encontros nos cafés do Saldanha.
Em A COLHER NA BOCA escreve o poeta a inciar o poema:
Falemosde casas, do sagaz exercício de um poder / tão firme e silencioso como só houve / no tempo mais antigo.
Casas, um tempo e um espaço arcaicos, é nessa realidade arquetípica que seguiremos, guiados pela mão do poeta. Será um afundamento, na palavra, no seu duro e impiedoso exercício, minuciosamento estruturado.Por muito que possa parecer escrita de mão livre, entregue aos impulsos da chamada escrita automática dos surrealistas, há um ordenamento estrutural na poesia de Herberto Helder que não é de acaso, mas sempre de cultura fina, de requinte subtil, ainda que por vezes oculto.
O poema segue, e não é logo de rosas que nos falará:
...
Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta / do gosto, o entusiasmo do mundo.
De amoras a amores, dos corpos de gente citados logo a seguir,a dedução seria fácil. Mas não será disso que se trata. Seguem-se elementos primordiais, fontes (água) pedras (ossos que são da terra), alguma coisa celeste (ar), como fogo exemplar (fogo).

Nada mudou, na aparência: estas são sempre as casas.
São centro, e fundamento.
Mas já entretanto vão chegar as rosas...
Referem-se os arquitectos que não viram as torrentes infindáveis / das rosas, ou as águas permanentes / ou um sinal de eternidade espalhado nos corações / rápidos.
Alguma coisa passou ao lado dos virtuais construtores de um universo invisível, montanha e mar fundiram-se entretanto, para que animais e estrelas / homens e mulheres ...ardessem devagar.

Volta-se então de novo, a falar de casas, e do que são: Casas são rosas / para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança / nos abandona para sempre.

O poeta convida, no fim, à reflexão sobre a alma e a morte.
As casas, de que desejou falar, abarcam o universo, o pequeno (do homem) e o grande (da matéria divina, toda por conhecer). Enumerados os elementos, que são quatro, na sua tradição, faltaria enumerar os princípios, que seriam três, se fossem convocados.
Não foram.
A rosa permanece fechada, como a de Rilke, na sua rotundidade perfeita, secreta, inominável.
O exercício pedido é o da paciência: como na oração de um alquimista, que tenho citado muito:
ora, lege, lege, lege, relege, labora et invenies (MUTUS LIBER).

Falemos de casas, diz o poeta, como quem fala da sua alma,
 entre um incêndio,
 junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
de beleza.

Assim se fecha o ciclo: das casas, centro da vida, às rosas, espelho da alma.
Ocorre-me mais uma citação alquímica, do Rosarium Philosophorum: dat rosa mel apibus, a rosa dá  mel às abelhas...