Monday, September 26, 2016

Ainda Andrés Queiruga

Já comecei a ler o ensaio, mais se calhar Manifesto de Fé para o tempo moderno, do que apenas ensaio, de Andrés Torres Queiruga:
Alguien así es el Dios en quien yo creo ( editorial Trotta, 2013).
Autor da minha geração (um ano mais novo do que eu, nascido em 1941) teólogo, filósofo, conhecedor das línguas que lhe permitem ler a Bíblia e trazê-la até nós com uma reflexão fundamentada, interessa-lhe sobretudo dar a conhecer o que é Deus, ou Quem é Deus, de modo a que leigos, como é o meu caso, se possam aproximar do seu entendimento, num mundo que em tudo se acelerou, o do nosso tempo. Um dos capítulo tem precisamente em subtítulo " Acreditar em Deus na Cultura Actual" (p.39). Há certamente uma maneira de sentir Deus em si: a da fé concedida. Pois creio que o dom da Fé não é inato, é concedido, e será vivido, conforme os casos, de diversas maneiras.
Andrés, e daí o modo como me seduz a sua leitura, tem procurado enquadrar a Fé numa esfera que é filosófica, tanto quanto teológica, e demora-se na apresentação e discussão do pensamento filosófico o tempo necessário para que o leitor comum o acompanhe.
Escolhe tópicos muito actuais: a ideia da criação por amor, o problema do mal, e a apresentação de um "Deus dos filósofos" para nos explicar o caminho de Deus na consciência religiosa, dos grandes místicos na sua entrega extática, ou nas civilizações, como explica Lessing na sua Educação do Género Humano ou na cultura em que se cresce, como no drama Nathan o Sábio (trad. Fundação Gulbenkian, 2016).
Lessing sublinha a questão da Ética, colocando a escolha livre do homem em cada acção e cada momento da sua vida acima dos dogmas de uma fé que o podem cegar (tantas e tantas vezes, ao longo da História) destroem nele a semente do Amor e do Bem que presidiram à ideia inicial da criação.
Para Andrés Queiruga Deus é o mundo, Deus está no mundo, está em nós, que fomos obra sua (em cada dia refeita?) daí que se torne urgente decidir em que Deus queremos, ou podemos, acreditar - ou sabendo, como ele nos diz tão claramente (el Diós en quien yo creo) já acreditamos e explicamos porquê.
Ele explica porquê.
Deus é a força Anti-mal, e a alegria de Deus suporta o universo, em simultâneo com o seu amor. Cita Spinoza:"o amor intelectual de Deus é uma parte do amor com que Deus se ama a si mesmo", e do mesmo modo a sua alegria sustenta a nossa e coincide com ela. Refere-se o autor não a uma alegria momentânea e superficial, mas ao sentimento profundo suscitado por saber-se envolto , e à sua vida, no mistério salvífico da graça divina.
A escrita de Andrés é a de um místico, crente, e que busca na filosofia razões que justifiquem esta sua relação com um Deus que deseja actual, atento, e que o obriga a falar de um cristianismo reinterpretado (p.19). É por via de Cristo Jesus, como nos diz, que melhor poderemos entender e aceitar o amor de Deus, que nele se tornou humano, como nós.
A terceira parte do livro aborda o caminho da filosofia à mística.
É para ler devagar, para chegarmos sem preconceitos à ideia de que "no infinito coincidem filosofia e teologia" (p.120).
Mas muito tivemos de ler antes, na Bíblia, os Salmos, os Profetas, as narrativas simbólicas e místicas que ao longo das épocas dão testemunho de uma presença (divina) e de uma entrega (humana) permanentes.
Não se concebe que possa haver um deus para os filósofos e outro para os crentes, embora se vejam diferenças de "estilo", resultantes das diversas culturas em que as experiências e o pensamento se enquadram, como se pode verificar pelas várias religiões conhecidas. Mas o autor, para nos demonstrar que num filósofo se pode encontrar uma revelação, mais até um apelo, a uma divindade Una a que nos podemos entregar em oração, deixa o chamado MEMORIAL de Pascal, o célebre filósofo francês, que escreveu num pergaminho, encontrado pelo seu criado poucos dias antes da sua morte em que proclama  " Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob; não o Deus dos filósofos e dos sábios!".
O Deus dos filósofos e dos sábios como podemos ver, desde a época do Iluminismo, e sobretudo em Lessing, que acompanha os Enciclopedistas franceses, é o deus da Razão Universal, o deus da Moral e do comportamento que o ideal da Revolução Francesa virá a consagrar nos conceitos de liberdade, igualdade, fraternidade, que a própria revolução em muito degradou, como se sabe.
Não, em Pascal, como em São Tomás de Aquino, a revelação de uma verdade outra, lida e vivida na Bíblia de um Deus pai Criador é-nos oferecida para meditação, e é com ela, na transcrição de Andrés Queiruga, que termino este post:
Ano da Graça de 1654,
Segunda-feira, 23 de Novembro, dia de São Clemente, Papa e mártir, e de outros santos (...) por volta das dez e meia da noite até aproximadamente as doze e meia da noite.
FOGO
DEUS de Abraão, DEUS de Isaac, DEUS de Jacob,
 não o deus dos filósofos e dos sábios.
Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria, Paz.
DEUS de Jesus Cristo.
Deum meum et Deum vestrum.
O teu DEUS será o meu Deus.
Esquecimento do mundo e de tudo, excepto de DEUS.
Só se encontra nos caminhos ensinados no Evangelho.
Grandeza da alma humana.
Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te.
Alegría, alegría, alegría, lágrimas de alegría. Dereliquerunt me fontem aquae vivae.
Deus meu, irás abandonar-me?
Que não seja apartado eternamente Dele.
Esta é a vida eterna, que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro e àquele que enviaste, Jesus Cristo.
Jesus Cristo. Jesus Cristo.
Eu separei-me Dele; fugi Dele; neguei-o, crucifiquei-o.
Que nunca mais seja separado Dele.
Ele está unicamente nos caminhos ensinados no Evangelho:
Renúncia total e doce.
Submissão total a Jesus Cristo e ao meu director espiritual.
Eternamente em alegria por um dia de exercício na terra.
Non obliviscar sermones tuos. Amen.

Eis a experiência pessoal de Deus, a que Andrés, em capítulos seguintes fará referência, nesta exaltação rara, mística, sentida por um dos grandes pensadores universais. Não têm de ser "descoincidentes" a experiência da busca do saber, do conhecimento de Deus, e a sua vivência prática, na Unidade do ser.
Será um acaso que tenhamos agora nas mãos a Bíblia de Frederico Lourenço, a começar pelos Evangelhos, num convite tão premente à sua leitura?
Não acredito em acasos, acredito mais, como Jung, em coincidências especiais..."sincronicidades".
O leigo, não-crente, poderá não ver em Jesus Cristo a Divindade. Mas poderá, por via de Queiruga, ver melhor, em Jesus Cristo, a Humanidade de Deus.





Thursday, September 15, 2016

Pensar para Existir

Enquanto não abro um novo blog para este efeito, de pensar mais para existir melhor, num mundo em convulsão que todos os dias nos entra pela casa dentro (pela alma dentro) e nos faz pensar no sentido de uma existência limitada, que é a nossa, e grandes interrogações sobre o futuro de filhos, netos, da própria espécie humana, que vejo suicidária, perdida dos seus valores religiosos e morais, aqui deixo a referência a um Teólogo de grande erudição que reflecte sobre a questão do Mal no mundo e pode ser uma espécie de incentivo a que se leia mais, e melhor, não ficando apenas, como eu fiquei, em Dizer o Mal, pela interrogação metafísica de alguns poetas que citei.
O ponto que o autor mais deseja debater é o que chama de Via Larga, no sentido de uma secularização aberta, e possível, no nosso tempo, desta premente discussão do Mal, perversão de uma realidade, a de que o Bem, vivido na nossa modesta e limitada esfera imperasse no mundo que nos rodeia.
Aguardo a reacção dos nosso leitores mais habituais.
O Mal, A Secularidade, E O Trabalho Do Conceito
por A. Heller, R. Mancini, A. Torres Queiruga,
ed. L'Altrapagina, Città di Castello, 2013 (pp. 33-90)
Nota de leitura ( do ensaio de Andrés Torres Queiruga)
 Começa A. Torres Queiruga, no ensaio incluído no volume colectivo, por actualizar o conceito de Teodiceia definindo uma via que parte da ruptura da tradição para uma "via curta", como diz, chegando a um conceito alargado, de "via larga" na actualidade.
Não refarei o percurso, de grande erudição, que nos propõe àcerca da Teodiceia ( o conhecimento de Deus) porque desejo chegar ao fundo da questão, que é a do eterno mistério do Mal, consentido ou não por um Deus Criador, perfeito, de um universo ainda por conhecer, mas em que vivemos, e no que dele já é conhecido, em plena imperfeição: violências de todo género, guerras, perseguições, de que o Holocausto, em todo o seu horror faz com que o Papa Bento XVI exclame, na visita a Auschwitz: "Porquê, Senhor, te calaste? Porquê pudeste tolerar tudo isto? "
Encontro em momento especial, no corpo da poesia de Paul Celan, a mesma interrogação, o mesmo espanto que afunda: como foi possível tanto horror consentido?
Para o autor reside aqui o estado actual da discussão da Teodiceia, tal como ele a vai apresentar no seu estudo. Porque o Papa, este Joseph Ratzinger, é um grande teólogo (cuja obra tenho, nas diversas traduções que fui encontrando e onde reconheci muitas das leituras que gostei de fazer, desde os primitivos Evangelhos apócrifos, ao seu entendimento superior do que significa a Comunhão, numa época em que a astrofísica e a física das partículas - a ciência pura, do conhecimento do Universo Criado - nos podem ajudar a viver melhor um momento de Fé, na plenitude do que significa um Mistério, o da permanência eterna da energia criadora...).
Desta apresentação segue o autor para o problema que aqui se desenvolve: o da existência, ou da presença do Mal, como tem sido discutido até agora, e cuja discussão ele deseja reorientar à luz de um novo entendimento possível. Refere em nota uma obra que tem tradução portuguesa, Repensar o Mal,da ponerologia à teodiceia, São Paulo, 2011.
A questão do Mal conduz à da relação de Deus com essa perversão no mundo, e do mundo, nas criaturas (feitas à imagem e semelhança de Deus, como se lê no Génesis) e o autor evoca o célebre pensamento de Epicuro, a esse propósito:
" Ou Deus quere tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não o quere tirar; ou não pode nem quere; ou pode e quere. Se quere e não pode, é impotente; se pode e não quere, não nos ama; se não quere, nem pode, não é o Deus bom e ainda por cima é impotente; se pode e quere - e isto é mais certo-então, de onde vem o mal real e por que não o elimina? "
Pergunta sem resposta. Contudo coloca o Amor no meio da interrogação, e adiante veremos que o Amor será um dos conceitos trazidos pelo autor à nossa reflexão. Um Deus que permite o Mal, pode ser um Deus do Amor? E não terá grande limitação, essa relação do seu Amor com as suas Criaturas (o comportamento delas no mundo? ).
 Por aqui se poderia colocar uma nova questão, a da Liberdade, não menos importante. Amor sem liberdade será amor em plenitude? Mas o abuso, o mau uso, dessa liberdade, não será uma das possíveis  raizes do mal, por ser perversão do primordial entendimento do Amor em plenitude?
As interrogações de Epicuro, no entender do autor, obviamente levariam ao ateísmo. Ora não é isso que ele pretende, no seu texto. Nem tampouco uma adesão cega a uma Fé que nada põe em causa. Faz então, como diz, algumas clarificações: discute a filosofia de Leibniz, pois não vê que seja útil, para a questão da Teodiceia, falar do melhor dos mundos possíveis. E discute a questão do Racionalismo, que pode ser apresentada como não respeitando o Mistério.
O propósito do autor é outro e julgo, sem ter competência teológica para em verdade o discutir, que ele pretende que pensemos o Mal não tanto ou de modo absoluto, por via da Teodiceia, mas antes por via da Filosofia. Aproximando as duas esferas, a que denomina de via curta ( na lógica da fé) e a que chama de via larga (que não recusa o trabalho do conceito). Pois só esta permitirá uma melhor adequação à nossa era, de Secularização e pós-Ilustração (no sentido do século XVIII , de Razão Ilustrada, ou seja culta, liberta de dogmas).
A dificuldade, na discussão do Mal, como na relação com Deus, é que abordamos aqui algo que é de todos os tempos, o mal humano é universal, de todas as épocas, em todos os momentos relatados o podemos verificar, conservados na memória dos povos encontramos sempre testemunhos dolorosos.
Explica o autor que a Teodiceia cristã se demarca das respostas ateístas, mas que o problema é humano, e comum, e só as respostas variam, conforme os pensadores: " a resposta de Schopenhauer não é igual à de Sartre".
Não se trata, para o autor, de "justificar" Deus,  mas sim de "justificar a ideia ou as ideias que nos fazemos do seu mistério: não se justifica o sol quando se refuta o geocentrismo".
Novo conceito, do Mistério de Deus, para nossa reflexão, a somar ao já atrás referido, do Amor; um Amor que se reporta à essência do Mistério de Deus, como acontece com o Mal. Mas será do Mal que ele deseja falar-nos : " Ou seja, fazendo ver que não há contradição entre a ideia cristã de Deus e a terrível realidade do mal.
O "problema "do Mal começou "por ser colocado dentro da religião", afirma o autor, referindo, desde logo, as memórias mais antigas, da Mesopotamia (Gilgamesh) dos hieróglifos egípcios do julgamento e pesagem das almas, Zaratrusta, na Pérsia antiga, o Livro de Job, na Bíblia de Israel, e mesmo sem esquecer o já citado Epicuro e as questões dilemáticas.
Surge em Leibniz, recorda o autor, a palavra Teodiceia, mas com ele estamos ainda na época que ele define como pré-moderna, e o que procura é um novo olhar "largo" sobre a questão do mal na criação divina, que dentro da esfera da fé encontra resposta, mas já não a encontra na época moderna, secular em que vivemos.
A circunstância em que se pode enquadrar a questão mudou, e com essa mudança, a abordagem que se espera. O autor não se exime a responder, e é essa honestidade intelectual que torna o seu desafio, e as suas propostas, tão aliciantes para o leitor interessado.
Afirma a " Necessidade de uma teodiceia actualizada" (p.11 do ensaio). Porque a teologia, tal como a filosofia, deve estar disponível para "dar a razão" das suas convicções. "Já era dito na Primeira carta de São Pedro (1, Pe 3, 15 ) e não pode negá-lo o cristianismo actual".
Redescutindo de novo o ditame de Epicuro, que não traz solução, empurra para uma forma racionalizada de impossíveis, é no Papa Bento XVI que o autor vai encontrar outra ideia-força, a da Caritas: na encíclica Deus caritas est .
Já se trouxe à reflexão o Amor, enquanto se discutia o Mal, discute-se agora a Caridade (forma de Amor, tal como a ideia da Misericórida).
Devagar, vamos descendo, por assim dizer, à esfera do humano, o puramente humano do nosso ser, crente, ou descrente, mas pensante.
Será na raiz do pensamento que poderemos encontrar novo caminho. Que não afaste, que leve a compreender.
Reconheçamos a autonomia do mundo, como escreve o autor, a  partir do Concílio Vaticano II, porque esse é o primeiro passo para enfrentar o problema do Mal de forma inédita. Muda-se, com isso, o sentido da velha pergunta, "de onde vem o Mal? " Havia o Bem (Deus) e havia o Mal( o Diabo). Afinal o que há é a limitação do mundo criado, e nós nele, com a nossa liberdade, que deriva da liberdade, ou da autonomia, que se deu com a Criação.
Chega ssim o autor à conclusão e a uma nova forma de entendimento do Mal: " a raiz última do mal reside na finitude do mundo". E não se exime a citar Spinoza, mais um filósofo para a lista das citações com que tem fundamentado várias vezes o seu discurso, que diz " toda a determinação é também negação" ( Omnis determinatio est negatio,Opera, ed. Pléiade,p. 1231 ).
Autonomia e finitude, pois.
Se com a ideia de autonomia já não se pode supôr que haveria, ou poderia haver, em parte, intervenção, com o acrescento da ideia fundamental de finitude, a questão fica, aparentemente resolvida. Não cabe a perfeição sonhada, na finitude, por definição imperfeita (porque finita! ).
 Não cabem, na nova proposta do entendimento de Deus, nem o Bem nem o Mal, cada um na esfera de comportamento e de escolha humana, própria. A esfera de Deus será necessariamente outra. A de um primeiro ponto, primordial, de que tudo o mais emanou (Nicolau de Cusa) em sucessivos momentos de diferenciação, até se atingir a escala do mundo e dos humanos, na imperfeição da finitude.
Afirma o autor que " todos intuimos que a finitude exclui necessariamente a perfeição omnímoda, pela mesma razão que um círculo não pode ser quadrado (...) um mundo finito-perfeito seria um mundo finito-infinito: um círculo-quadrado, uma contradição" (p.16).
Deste modo o autor retira da discussão o Mal, e a sua raiz em Deus: " Porque se a raiz do mal está na finitude, dado que qualquer mundo possível, não podendo ser Deus, será necessariamente finito, torna-se impossível pensar ...um mundo sem mal. Seja qual fôr o mundo possível, seus elementos e modos de articulação serão distintos; mas sendo limitados (...) estarão sujeitos a falhas e a sofrimentos".
Em relação directa com este problema da finitude surge o da liberdade: não é infinita; é limitada ao espaço da nossa finitude. Kant deveria talvez ser introduzido aqui, pois transitámos para o domínio da Moral, e da Razão Prática, tão do seu agrado, porque transforma um problema maior num problema social e moral de cada um. Da mão do homem nasce o Mal, Deus (o En-Soph da Kabbala) na sua anterioridade, ainda não é o responsável pela sua existência. (Mas este é um àparte meu).
Seguindo ainda o autor, embora de modo resumido, chegamos a um outro conceito muito importante para o aclaramento das suas ideias : o de Bondade.
Falou-se do Amor, fala-se agora de Bondade.
A bondade infinita de Deus, manifestando-se em Jesus, ( o Verbo se fez carne e habitou entre nós...) a sua incarnação, humana e finita enquanto o considerarmos como tal, expoente supremo de um Anti-Mal (contra o qual lutará até ao sacrifício último na Cruz). Mas estamos neste momento a sair da filosofia para voltar à religião. Pois teremos depressa de distinguir, como faz Ratzinger, o Jesus histórico da figura de Cristo, o Redentor.
A discussão do Mal reenvia-nos, necessariamente, para uma meditação mais funda, a da nossa relação com Deus, o seu Mistério supremo. E para a busca do entendimento da Fé: quando alguém como Maria José Nogueira Pinto, figura pública da nossa política, a poucos dias de falecer, afirma, num programa de televisão "nada me faltará", para além da emoção com que deixa o seu público, com que mais o deixa? Com a certeza da sua fé na Transcendência de um mundo onde será acolhida, por um Deus que a ama, embora não lhe poupasse a dôr de uma morte prematura (como fez a Jesus seu Filho).
 Por outras palavras: embora filosofemos, será sempre maior o mistério da Fé que sublima a finitude, o sofrimento, numa entrega tão íntima que só mesmo um Místico ou um Santo poderão explicar. Ou um Homem Bom.
Sem espaço para a discussão do Mal.














Sunday, September 04, 2016

Fabio Gorodski, VARIEDADES e vários episódios, Chiado ed. 2014

Este é um livro que me chega às mãos de modo algo surpreendente, embora já tenha acontecido algo assim, uma vez ou outra.
Delicadamente, por e-mail, é a mulher do jovem escritor - digo jovem porque tem a idade do meu filho mais novo - e não é ele mesmo quem me pede para enviar o livro.
Gosto de ler, aceito sempre. Recebi o livro, vindo da Alemanha, onde me foi dito que vivem. Berlin, cidade onde estive tantas vezes, escrevi, fiz seminários, fui à ópera, ao teatro, passeei nas ruas, vi em 61 crescer o muro, as casas, de um dia para o outro e aceleradamente serem isoladas com tijolos, cimento, houve quem se atirasse da janela, para morrer no chão , o mundo ali dividiu-se de ume forma súbita e terrível. Anos depois, em viagem de estudo, visitei a RDA, íamos ver escolas e universidades, e nas livrarias comprávamos livros de arte mais baratos. Ouvir, só os discursos oficiais. Conversa normal não havia, havia medo. Voltei, já depois da queda do muro, e assisti à capacidade maravilhosa de renascer, de que a Alemanha fez prova, recuperando edifícios, criando espaços de Arte para bailarinos, pintores, que ocupavam alguns edifícios vazios e neles exibiam as suas actividades. Num desses conheci Sasha Walz, jovem em início de carreira como coreógrafa, hoje genialmente reconhecida e muito premiada. E vi na Akademie der Kuenste (não tenho umlaut, peço desculpa pela forma antiga de ortografar) Cesc Gelabert, a quem dediquei um poema, num dos meus livros. O brilho, a energia da luz de um corpo a solo, num espaço imprevisível. Enfim. Amo esta cidade onde não voltarei, e quem sabe se foi por saber que Fabio vive lá que me interessei pelo seu livro.
Capa bonita, simples, e que nas badanas não diz nada sobre quem é o autor, cidade onde nasceu, idade, etc.
Diz contudo que é músico, compositor, com formação electroacústica (em Colónia) e doutor em estética, ciências e tecnologias das artes (Paris 8), tendo dado inúmeros concertos no Brasil e na Europa, e recebido vários prémios. Fez ainda videos experimentais, apresentados na Suiça, uma Homenagem  a Calder (França) e com este livro que tenho aqui à frente ganhou menção honrosa no Concurso de Literatura Cidade de Belo Horizonte em 2014.
Depreendo, embora ele não o diga, que seja brasileiro.
A sua prosa tem essa marca de originalidade, inova pela forma, são contos de prosa e imagens comprimidas em cerca de duas páginas, no máximo(arte difícil, como seria a exposição de um tema, antes das elaborações a solo de cada um, a seguir). Mas também podemos pensar que não são um tema, único, a viagem pelas palavras soltas dentro, ao modo onírico, livre, mas vários temas, interrompidos a meio e que logo poderão ser retomados.
Ou, como estamos perante a escrita de um compositor, que estes são os solos, derivas sobre algum tema exposto: a leitura, por exemplo, de notícia de jornal, reportagem de televisão, visita a um museu ou uma galeria de arte, experimentação própria, musical, de várias formas e em que o gesto, o som, desencadeiam o discurso  de prosa poética, inacabada, ou puramente solta.
Um estilo que de tão aparentemente descritivo, como se o dito fosse de facto vivido, e com datas no fim a assinalar o lugar ( o espaço) e o momento (o tempo), deixaram-me pensativa.
Pelas datas, lugares e tempos, parece que andou pelo mundo inteiro: que idade teria este este músico escritor? O texto mais antigo, datado de 1970...e os outros por aí fora, até à brincadeira de um "romance" em Tóquio, 2039...
Pensei, enquanto ia lendo: se é velho, foi embaixador? Se é jovem, viajou com o pai, ou com alguma ONG?
É claro que procurei informação, no google, a enciclopédia e a polícia do mundo. E ainda fui ver se tinha facebook, que toda a gente tem.
Vi então que nasceu em 1971, um ano mais novo do que o meu filho mais novo, João, que também é músico, de jazz, com formação nos Estados Unidos, e anda, como este Fabio, já pelo mundo inteiro, e há muito tempo. Deixo a indicação, quem sabe se virão a encontrar-se, o João (ver João Moreira, tem página oficial no face) é também ele múltiplo nos interesses e práticas musicais. Hoje  está em Paris, com o António Zambujo...
Mas (ao menos por enquanto, não escreve).
Mas voltando aos contos do Fabio: espero que sejam divulgados em Portugal: inovam, pela escrita, e não apenas pela forma tão concisa, de como quem diz, não se cansem, leiam apenas um pouco, de preferência repousem a seguir, pois vem lá mais...viagem, como fiz pelas inscrições de lugares e datas, num tom que parece ser sério e é só de brincadeira.
Pois como posso ter escrito antes de nascer? Há uma lição nesta escrita: a mão de um imaginário livre, é a prosa que se constitui como espaço e tempo, os detalhes, não sendo verdadeiros, quem sabe se poderiam sê-lo, tudo é pura "onda", pura energia em movimento, somos atravessados por ela, e o que nasce da nossa mão ou já foi antes ou virá a ser, negra poeira cósmica.
 De algum magma secreto se formará, uma vez e outra, como aqui, neste caso, um outro Verbo.
Escolho uma citação do autor,  do conto Hálito, para acabar:
"O homem fala e constitui o mundo, através da fala, literalmente
(...) falar é criar o mundo, fundá-lo, estabelecê-lo, edificá-lo, compô-lo, segundo consta foi a primeira tarefa de Deus: e haja isto e houve, e haja aquilo e mais aquilo e houve também, conforme proferiu o mundo assumiu suas respectivas qualidades e atribuições. Quase tudo: no sexto dia Ele criou o homem, criatura à parte, precisou de algo mais, - precisou soprar algo em suas narinas, a Sua alma, a própria, ou parte dela ao menos, da seguinte forma: um pedaço de maçã  mordido na boca de alguém e arrancado do todo é uma parcela que corresponde integralmente àquilo que restou do fruto e que a mão ainda segura. Ou dito outramente: assim como aquilo que constitui a maçã está igualmente dentro e fora da boca, e não há contradição nisso, a alam Dele está dentro de nós e fora também. Exalar nosso ar ao falar, bem do fundo de nós para restituir ao mundo em maravilhosa gratidão o sopro que em nosso início Ele nos concedeu(...) fazer nós também como Ele para constituir nosso pequeno mundo conforme Sua grande vontade, e descansar no sétimo dia" .
(p.69)
Mas este lirismo sublime, que não nos mistifique, pensando que nada haverá de mais interessante: logo no Romance ele desenha a utopia que no Japão de 2039 lhe permitirá dormir com uma boneca de corpo e de pele tão perfeita, que nada lhe faltará, e muito menos uma Eva das de outrora, Evas tão imperfeitas...
Sim é um livro para ler, para pousar e abrir de novo, e viajar pelo sabor de um português tão nosso, mas melhor!